Há 3 mil anos o ser humano tenta resolver o problema da morte,
descobrir sua missão no mundo e aprender a decidir o que é certo ou
errado. O problema é que, nesse tempo todo, acabou criando um monte
de palavras difíceis. Mas fique calmo: agora você vai entender o
que elas significam.
CARTESIANISMO:
Duvidar de tudo, negar tudo que não resiste à dúvida, como queria
o francês René Descartes , o principal dos filósofos modernos. No
livro Meditações Metafísicas, de 1641, Descartes propôs que todo
conhecimento começasse de volta, do zero, recusando todos os
“argumentos de autoridade”, aquilo que o homem acreditava por
tradição ou por imposição de alguma autoridade ou religião. Para
perceber o impacto da ideia, basta saber que, depois de Descartes, o
mundo passou a viver séculos de revoluções em várias áreas,
botando abaixo tudo o que não resistia à dúvida, seja a ideia de
que a Terra é o centro do Universo, seja a de que os reis são
pessoas superiores. Para o historiador francês Alexis de
Tocqueville, a Revolução Francesa, por exemplo, foi “feita por
cartesianos que saíram das escolas e desceram à rua”. Se você
usa uma camiseta com o Che Guevara, mude já a estampa:
revolucionário mesmo foi Descartes e sua ideia de duvidar de tudo.
CINISMO: Doutrina
de filosofia grega que considerava a honestidade o único requisito
para a felicidade. Único, mas único mesmo: os cínicos eram filósofos mendigões, ascetas radicais que não estavam nem aí para
roupa, dinheiro, família, costumes, tradição e higiene. Viviam
conforme a natureza, como cachorros vira-latas, e não apenas
aceitaram o rótulo como tomavam o bicho como símbolo de sua ideia
de virtude, daí o nome (do grego cyon, “cachorro”). Diógenes
(412-323 a.C.), o maior dos cínicos, era realmente um morador de rua
e teve várias histórias famosas: quando perguntaram a ele como
resistir aos desejos da carne, ele se masturbou em público e disse:
“Se ao menos eu pudesse matar minha fome esfregando a barriga...”
Quando Alexandre, o Grande, perguntou a Diógenes se podia lhe fazer
algum favor, o cínico respondeu: “Sim, saia da frente do meu sol”.
A fama dura até hoje.
CONSERVADOR: Vá
ao verbete “modernidade”. Foi? O contrário de ser moderno é ser
conservador. Não se trata tanto de uma posição política, mas de
outro jeito de olhar o ser humano. Se os modernos achavam que o homem
pode ser melhorado se a sociedade mudar, os conservadores preferiam
pensar como na Idade Média: que o homem é naturalmente mau, e a
sociedade (a polícia, a hierarquia, a religião) serve para
civilizá-lo, contê-lo. É por isso que, para os conservadores, uma
mudança lenta e gradual é sempre preferível à revolução, que,
para eles, deixam à solta a tendência destrutiva do homem. “É
impossível estimar a perda que resulta da supressão dos antigos
costumes e regras da vida”, escreveu no século 18 o inglês Edmund
Burke. Os conservadores são o grupo mais fora de moda nos últimos
séculos, mas, a favor deles, está o fato de que, como previram, da
Revolução Francesa até as revoluções do século 20, não foram
poucas as que acabaram em tragédia, opressão e assassinatos em
massa.
DIALÉTICA:
Diálogo. É a arte de debater, argumentar e contra-argumentar.
Sócrates foi o homem que estabeleceu o costume do diálogo nas rodas
de intelectuais da Grécia. Por isso, muita gente o chama de pai da
filosofia. Antes de Sócrates, valia mais a retórica, a arte do bem
falar, do que os argumentos em si. Séculos depois, no século 18,
“dialética” passou a significar uma dinâmica em que as coisas
se sobrepõem, uma substituindo outra. Como quando as crianças, em
círculo, colocam em sequência as mãos, uma acima da outra.
ÉTICA: Definir o
que é certo e o que é errado. Simples, não? O problema é que a
ideia de certo e errado muda sempre, dependendo de como enxergamos o
mundo. Por exemplo: os gregos achavam que o homem deveria se integrar
à harmonia do Cosmos. Por isso, usavam a natureza para saber o que
era certo ou errado. Se, na natureza, havia hierarquia entre animais
mais fortes que outros, então era muito bem aceitável que, entre os
homens, houvesse escravidão. Já na Idade Moderna, quando o homem se
considera superior à natureza, a escravidão torna-se, aos poucos,
uma ideia absurda.
EPICURISMO: Para
Epicuro (340-270 a.C.), o ideal do bem é viver sem medo e sem dor,
aproveitando o dia de hoje. “Quem menos sente a necessidade do
amanhã mais alegremente se prepara para o amanhã”, diz Epicuro.
Parece culto ao prazer, mas ele dizia também que, para viver bem, o
jeito é se abster de grandes prazeres, evitando assim a frustração
quando eles não puderem ser obtidos. Essas palavras fizeram muito
sucesso na Roma antiga, quando o prazer falava acima de quase tudo.
ESTOICISMO:
Diferentemente do epicurista, o estoico acredita que o mundo é
governado por uma lógica divina, ou seja, Deus está no mundo e sua
manifestação é a ordem das coisas. Assim sendo, o negócio é
estar do lado da natureza, mesmo que isso possa implicar desconforto
mental ou físico. O estoicismo prega que somente pelo desapego,
ignorando dor e prazer, é que se descobre a verdade.
HERMENÊUTICA:
Interpretação de texto. É a parte da filosofia que pensa no que o
autor realmente quis dizer com um discurso, um filme ou um evangelho
escrito 2 mil anos atrás. Por exemplo: na Bíblia, o fato de os
judeus serem os traidores de Jesus é encarado como uma estratégia
para os evangelhos caírem no gosto dos romanos, que, na época,
perseguiam os judeus.
HUMANISMO:
Fenômeno que começou no século 16 e colocou o ser humano no centro
do Universo. Se você já leu várias vezes essa explicação sem
entender muito bem, tente pensar numa época antes do humanismo: a
Idade Média. A vida humana então não tinha tanto valor quanto
hoje: os filhos só eram batizados se persistissem em sobreviver, já
que a maioria morria nos primeiros anos. A ideia de infância não
existia – as crianças vestiam roupas de adultos e, nas obras de
arte, eram representadas como adultos pequenos. Como os pintores
trabalhavam por devoção a Deus, e não por um reconhecimento
pessoal, muitas pinturas não eram assinadas. E a ideia de que Deus
decidia tudo era tão forte que ninguém imaginava que poderia
melhorar de vida, progredir por esforço próprio. Se você nascesse
um camponês pobre, encararia isso como uma decisão divina, sem
imaginar que poderia agir para ser diferente. Com o humanismo, o ser
humano aos poucos virou o centro das atenções – pinturas
(assinadas) do rosto de pessoas ficaram cada vez mais comuns, assim
como o estudo do corpo humano e suas medidas (lembra-se daquele
desenho do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci?). A ideia é de
que quem determina o que é certo ou errado não é Deus nem as
tradições, mas as pessoas e sua capacidade individual de pensar. Um
exemplo é Maquiavel (1469-1527), autor de O Príncipe. Ele rejeitou
a moral bíblica para que seu príncipe conquistasse um bem
permanente pelas vias do mal passageiro – o famoso “os fins
justificam os meios”. Também surge com o humanismo a idéia de que
o ser humano pode trazer o céu à terra. Foi nessa época que o
termo “utopia” foi inventado, pelo inglês Thomas Moore
(1478-1535) – o livro Utopia descreve uma ilha em que tudo seria
perfeito.
IMANÊNCIA:
Repare neste fragmento de Tales de Mileto: “Todas as coisas estão
cheias de deuses”. Imanência é isso: a ideia de que Deus ou
algum princípio divino, ou qualquer ideal, está aqui, entre nós,
presente no mundo, nas leis da física, nas pessoas, nos seres vivos
e talvez em todas as coisas. Por isso, para os gregos da época de
Tales, era preciso abrir os olhos para o mundo, ou seja, apreciar a
ordem natural das coisas, a harmonia da natureza. Não é à toa que
a palavra teoria vem do grego to theion, ou “eu vejo o divino”. E
que os filósofos dessa época, como Tales, se dedicaram a estudar os
princípios da natureza, como na geometria.
ILUMINISMO: Nos
séculos 16 e 17, as pessoas se sentiam perdidas no escuro. As
descobertas científicas de Newton, Kepler e Galileu derrubaram a
ideia de que o mundo era uma coisa pronta e ordenada por Deus.
Começamos a olhar o Universo como um lugar sem ordem, em que forças
da física a todo momento se debatem. Então, o que fazer?
Iluminar-se, criar uma ordem para o mundo. É o que propõem os
filósofos da época, principalmente Emmanuel Kant , com o livro
Crítica da Razão Pura. Por meio da ciência, da razão, o ser
humano passou a tentar a explicar o mundo e catalogá-lo – vêm daí
os primeiros museus e disciplinas científicas.
MODERNIDADE:
Pegue os verbetes humanismo, cartesiano e iluminismo e misture-os
bem. Modernidade são os últimos 5 séculos, época em que o ser
humano começou a se achar o centro do mundo, passou a usar a razão
para conhecer o mundo e a acreditar que a mudança, o progresso,
conduz a uma coisa melhor que o passado. O espírito da modernidade é
a ideia de que a ciência – todas as ciências, da psicologia à
arquitetura – pode melhorar a sociedade e até mexer com a alma
humana, melhorando o próprio homem.
MATERIALISMO:
Lembra-se do Kléber Ban-Ban, aquele do Big Brother que dizia “faz
parte” a toda hora? Materialismo é acreditar que o sonho acabou e,
como faz o ex-BBB, dar de ombros aos problemas da vida. Literalmente,
é acreditar na matéria, amar o mundo tal como ele é. O
materialista não tem utopias, tenta esperar pouco da vida. “Esperar
é desejar sem fruir, sem saber e sem poder”, afirma o filósofo
André Comte-Sponville, a voz do materialismo no século 20. O
problema do materialismo contemporâneo é: como amar a realidade em
momentos como o genocídio de Ruanda sem dizer “faz parte” ou
recorrer a utopias?
METAFÍSICA: O
nome certo era para ser “primeira filosofia”, como Aristóteles a
chamava. Mas, quando o filósofo Andrônico de Rhodes foi organizar
os livros de Aristóteles na biblioteca de Alexandria, simplesmente
colocou esses volumes à direita da “física” aristotélica e
escreveu: “os livros que vêm depois da física”. Os romanos
entenderam tudo errado: achavam que a tal “metafísica” era o
estudo das coisas “além do mundo físico” – em outras
palavras, coisas inventadas, como os deuses. Na verdade, é a
metafísica que faz as perguntinhas mais amplas, tipo “quem somos,
de onde viemos?”
NIILISMO: É
negar a realidade, dizer não ao mundo real em prol da imaginação
de um mundo perfeito, de um ideal transcendente, do “nada” –
que em latim é nihil. Os niilistas proliferaram no século 19, com
as grandes ideologias políticas, e seu maior inimigo foi
Friedrich Nietzsche . Pense com ele: depois da modernidade, quando
deixamos de explicar o mundo por atos de Deus, tivemos de arranjar
outros ídolos, outros ideais sublimes para dar à vida uma sensação
de eternidade. Em vez do paraíso da Bíblia, o novo ideal virou o
nacionalismo, o cientificismo (pensar que a ciência resolveria todos
os problemas do homem) ou o comunismo. Nietzsche chega a tratar o
comunismo como uma religião, com apenas uma diferença do
cristianismo: atribuir nossos problemas aos outros ou a nós mesmos –
“a primeira coisa faz o socialista, a segunda o cristão”, afirma
ele em Crepúsculo dos Ídolos. Niilismo também significa achar que
nada tem valor – que não há motivos para respeitar tradições,
leis ou princípios morais. É a perigosa ideia de que “se Deus
não existe, então não há crime, não há pecado; tudo é
permitido”, como diz um personagem do livro Os Irmãos Karamazov,
de Dostoiévski, outro grande crítico do niilismo.
PLATONISMO: Ver o
mundo em duas partes. Platão (427-347 a.C.) dividia o mundo em dois:
para ele, antes das coisas reais, do mundo real em que vivemos,
existem as ideias das coisas, que são eternas e vivem no “mundo
das ideias”. Esse mundo das ideias seria o único de fato
verdadeiro; e este aqui, em que vivemos, seria uma sombra, uma
ilusão. Platão também acreditava na imortalidade da alma, que, de
vez em quando, era aprisionada em corpos humanos. O platonismo lembra
muito uma religião, não? Pois é exatamente a visão de mundo de
Platão que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo se apropriaram.
Séculos depois de Platão, suas ideias se misturaram com crenças
judaicas, que deram ao mundo das ideias uma cara, uma forma de
pessoa: Deus.
PÓS-MODERNIDADE:
Sabe alguém que não gosta de usar celular, toma remédio de
homeopatia e, nas férias, percorreu a pé o Caminho de Santiago?
Pois eis aí um belo pós-moderno. Na teoria, o pós-modernismo é
uma recusa à modernidade, uma desconfiança dos valores do
iluminismo. Na prática, ele aparece em toda parte, principalmente
como uma recusa às grandes correntes . Em vez das grandes religiões
tradicionais, doutrinas orientais como o budismo. Na moda, é aquela
camiseta única, cuja estampa você mesmo inventou. Na arquitetura:
em vez dos prediões de linhas retas e funcionais do começo do
século 20, linhas curvas. E até no turismo: em vez do pacotão da
CVC, uma experiência única, como fazer o Caminho de Santiago ou
percorrer a França de bicicleta .
TRANSCENDÊNCIA:
contrário da imanência, é a ideia de que Deus é algo separado do
mundo (ou seja, “transcende” a ele) e que o mundo segue por sua
própria conta as regras criadas por Ele. Depois dos livros de Kant,
transcendência passou a significar também pensar não nas coisas em
si, mas na relação entre as coisas como elas são vistas e o que
existe de fato. Ou seja, “transcender” o senso comum não
filosófico, atingir a verdade por trás das coisas.
VERDADE: O
objetivo final da filosofia – apesar de que, para alguns filósofos,
acreditar na verdade é cair num grande mal-entendido. Ou não.
“Pensarei que o
céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas
exteriores que vemos não passam de ilusões e enganos de que ele [um
deus enganador] se serve para surpreender minha credulidade.
Considerar-me-ei a mim mesmo como não tendo mãos, nem olhos, nem
carne, nem sangue, como não tendo nenhum dos sentidos, mas
acreditando falsamente possuir todas essas coisas. Permanecerei
obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse medo, não
estiver em meu poder atingir o conhecimento de nenhuma verdade, pelo
menos estará em meu poder fazer a suspensão de meu juízo. [...]
Posso duvidar de tudo, mas tenho certeza de que estou aqui, pensando,
duvidando. Sou uma coisa que duvida, que pensa.” RENÉ DESCARTES,
MEDITAÇÕES METAFÍSICAS
“É injusto que
se apeguem a mim, embora o façam com prazer e voluntariamente. Eu
iludiria aqueles em quem despertasse desejo, pois não sou o fim de
ninguém e não tenho com o que satisfazê-los. Não estou eu pronto
a morrer? E, assim, o objeto do apego dessas pessoas morrerá. Logo,
quando não seria eu culpado por fazer crer numa falsidade, embora eu
a adoçasse e acreditasse nela com prazer, e que ela me desse prazer,
ainda assim sou culpado de me fazer amar. E, se atraio as pessoas
para que se apeguem a mim, devo advertir aqueles que estariam prontos
a consentir na mentira de que não devem acreditar, qualquer que seja
a vantagem que daí me advenha.” BLAISE PASCAL, PENSAMENTOS
“Viver
significa ter de ser fora de mim, no absoluto fora que é a
circunstância ou mundo: é ter de, querendo ou não, enfrentar-me e
chocar-me, constantemente, incessantemente com tudo que
integra esse mundo: minerais, plantas, animais, os outros homens. Não
há remédio. Tenho de atracar-me com isso tudo. Tenho de me ajustar
com tudo isso. Mas isso acontece ultimamente a mim só, e tenho de
fazê-lo solitariamente.” JOSÉ ORTEGA Y GASSET, O HOMEM E A GENTE
“Todos os
célebres ideais da política, da moral e da religião são apenas
ídolos, inchaços metafísicos, ficções que não visam nada a não
ser fugir da vida, antes de se voltar contra ela.” FRIEDRICH
NIETZSCHE
por FABIO MARTON E LEANDRO NARLOCH