Nós
vamos partir de uma premissa nietzschiana, que, bem ou mal, Espinosa
já tinha introduzido, e que Freud vai consagrar. E qual é a
premissa? Aquilo que passa pela sua cabeça, ou, se você preferir, a
consciência, é a parte ínfima e menos importante, e pior, da sua
psique. Eu vou repetir: aquilo que passa pela sua cabeça é a parte
ínfima, de pior qualidade, e menos importante da sua psique.
Então,
se você acha que o que você pensa é o que passa pela sua cabeça,
saiba que o que não passa pela sua cabeça é o que tem de melhor no
seu pensamento. O seu pensamento é muito mais amplo do que aquilo
que passa pela sua cabeça. Então nós podemos chamar isso com o
nome que isso ganhou: aquilo que você pensa e que não passa pela
sua cabeça é denominado de Inconsciente.
Nietzsche
diz em alemão: “es denkt in mir”, que significa algo
pensa em mim. Perceba que não é “eu penso”, e sim “algo
pensa em mim”. Isso é
fundamental. Em outras palavras, o que acontece é que você não é
senhor do próprio pensamento. O pensamento é uma atividade do seu
corpo que transcende o seu controle consciente. Algo pensa em mim,
portanto, existe uma força que pensa em mim, e que obviamente escapa
à minha decisão, ao meu controle, a minha deliberação, e assim
por diante. Ficou claro isso: “Eu não sou completamente
responsável por aquilo que eu penso”? Algo pensa em mim, isso é
fundamental você entender.
Segundo
Nietzsche, a consciência é a parte mais ínfima e a pior de tudo o
que o indivíduo pensa; portanto, o inconsciente é o essencial da
vida psíquica. Não existe um “eu” arquitetando coisas, existe
força que produz pensamento. Eu, quando muito, assisto o que eu
mesmo pensei, e consequentemente falei. É só o seu corpo, é tudo o
que é, é só a imanência do corpo, é só a força vital; é só o
corpo que, enquanto movido por uma energia, tem uma competência de
articulação de símbolos, é só isso.
O
que você poderia chamar de “eu”: a reunião de um corpo que
pensa, que se movimenta, e que é movido por uma energia que oscila,
e que oscila em função dos choques e dos encontros com outras
energias. Não há nenhuma especificidade de você em relação a
animais, plantas ou mesmo minerais.
Mas
quem é o “eu”? Há um “eu” que habita nós mesmos? -
Nietzsche nos responde através de Zaratustra: “Por detrás de
teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, se encontra um poderoso
senhor e um sábio desconhecido - ele se chama si mesmo. Ele habita o
teu corpo, ele é o teu corpo. Há mais razão em teu corpo do que em
tua melhor sabedoria. E quem sabe, aliás, para que o teu corpo
necessita justamente da tua melhor sabedoria? Teu si mesmo se ri do
teu eu e de seus saltos orgulhosos. ‘O que são para mim esses
saltos e asas do pensamento’?, diz ele consigo. Um desvio para as
minhas finalidades. Eu sou a andadeira do eu e aquele que infla os
seus conceitos.”
Percebe-se
que Nietzsche inverte os polos sagrados da metafísica, do
Cristianismo, do platonismo, do dogmático e propõe o “corpo”
enquanto a grande razão. Aqui não há uma alma, um espírito, um
“eu”, uma substância subjetiva que está aprisionada no corpo, é
o próprio corpo que és tu.
Aqui
valeria uma comparação com os dois outros pensadores que também
são pensadores da desconfiança, da suspeita, por que pensadores da
suspeita? Porque suspeitam que a consciência não é senhora de si
mesma, que são Marx e Freud.
Se
você ler Marx, você dirá: aquilo que passa pela sua cabeça é a
ideologia, e essa ideologia não se explica por si só, existe um
inconsciente coletivo que é determinado pelas forças de produção
e pelas relações de produção.
Se
você ler Freud, você dirá: o que passa pela sua cabeça é a ponta
do iceberg, que é determinado por um inconsciente que você não
controla e do qual você obviamente não tem consciência porque
senão não seria inconsciente.
Pois
muito bem: qual é a
diferença de Freud, Marx e Nietzsche?
Por que existe uma diferença fundamental? Quando
o analisando vai ao divã psicanalítico e começa a falar, o
freudismo tem a pretensão de estabelecer sobre aquele discurso uma
espécie de verdade, é a verdade do inconsciente que emerge na
análise.
O
analista, portanto, constrói uma gramática que relaciona o que o
analisando diz com aquilo o que ele diz significa. E essa gramática
é chamada de interpretação dos sonhos, e tem um lindo livro do
Freud sobre isso. Então, o que é a psicanálise? é uma forma de
construção de verdades sobre o inconsciente daqueles que se
submetem a esse tipo de análise.
E
o marxismo? É a convicção de que a sociologia identificará
verdades sobre o que passa pela cabeça das pessoas enquanto
ideologia. Eu não sei se você percebeu, mas quando Marx e Freud
analisam o discurso de alguém, eles analisam na posição de
cientista, na posição daquele que sabe o que o outro não sabe, na
posição daquele que sai da ilusão e chega até a verdade. No caso
de Marx, isso ainda é pior. Os marxistas, além de acreditarem na
verdade, são dogmáticos; não só eles sabem a verdade, como só
aquela é a verdade.
Nesse
ponto, Nietzsche é infinitamente mais sofisticado. Por quê? Porque
quando você vai analisar o mundo, quando você vai analisar um
discurso, diz Nietzsche: a interpretação é por sua vez
interpretável, e a interpretação da interpretação também é
interpretável, e assim por diante, e haverá sempre uma caverna por
detrás da caverna, haverá sempre um submundo por detrás das
fundações, haverá sempre interpretações ao infinito.
Então,
para que isso fique mais claro, imagine você no divã: você deita e
começa a falar, aí vira o analista e diz: bom... eu vou interpretar
o que você falou.
Para
Freud morreu ali, para Nietzsche não. Quando o analista interpreta o
que o outro falou, o que ele mesmo falou nada mais é do que o
resultado das suas próprias forças vitais e, portanto, pode ser
interpretado por um outro, que quando for interpretar vai falar das
forças vitais dele, e quando mais um outro for falar vai também
falar das suas próprias forças vitais. Em outras palavras: só há
interpretações ao infinito.
O
fato de que quando nós falamos sobre o mundo, o que nós falamos não
é bem uma análise objetiva do mundo, mas é aquilo que as nossas
forças vitais e os nossos estados de psique determinaram. E,
portanto, evidentemente, quando Nietzsche escreve a sua obra, ele não
diz: leia isso aqui porque isso aqui é a verdade sobre o mundo. De
jeito nenhum. Melhorar a humanidade é a única coisa que você não
deve esperar de mim, ele diz, isto aqui é a minha produção, isto
aqui são as minhas forças.
Quando
o psicanalista fala do discurso do analisando, não há no discurso do
psicanalista nem uma vírgula de verdade a mais do que o próprio
analisando falou. E se um outro analista analisar a análise desse
analista, também não haverá nenhuma vírgula a mais de verdade.
Por quê? porque todos estarão falando apenas o que as suas forças
vitais estiverem determinando.
Por
isso diz Nietzsche: toda filosofia é uma fachada, toda palavra é
uma máscara, tudo é uma ilusão, nada mais é do que forças vitais
em produção, em produção semiótica, em produção psíquica, só
isso, nada mais do que isso.
*
Prof. Clóvis de Barros Filho, filósofo, é professor de Ética da
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo –
ECA/USP. Doutor em Direito pela Universidade de Paris e em
Comunicação pela Universidade de São Paulo, professor de Ética da
HSM Educação, e consultor de Ética da UNESCO.
Texto
extraído da fala do Prof.
Clovis de Barros Filho no
vídeo “Negar
a fórmula e Viver a vida”
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