30 de agosto de 2025

O INCONSCIENTE

Nós vamos partir de uma premissa nietzschiana, que, bem ou mal, Espinosa já tinha introduzido, e que Freud vai consagrar. E qual é a premissa? Aquilo que passa pela sua cabeça, ou, se você preferir, a consciência, é a parte ínfima e menos importante, e pior, da sua psique. Eu vou repetir: aquilo que passa pela sua cabeça é a parte ínfima, de pior qualidade, e menos importante da sua psique.

Então, se você acha que o que você pensa é o que passa pela sua cabeça, saiba que o que não passa pela sua cabeça é o que tem de melhor no seu pensamento. O seu pensamento é muito mais amplo do que aquilo que passa pela sua cabeça. Então nós podemos chamar isso com o nome que isso ganhou: aquilo que você pensa e que não passa pela sua cabeça é denominado de Inconsciente.

Nietzsche diz em alemão: “es denkt in mir”, que significa algo pensa em mim. Perceba que não é “eu penso”, e sim “algo pensa em mim”. Isso é fundamental. Em outras palavras, o que acontece é que você não é senhor do próprio pensamento. O pensamento é uma atividade do seu corpo que transcende o seu controle consciente. Algo pensa em mim, portanto, existe uma força que pensa em mim, e que obviamente escapa à minha decisão, ao meu controle, a minha deliberação, e assim por diante. Ficou claro isso: “Eu não sou completamente responsável por aquilo que eu penso”? Algo pensa em mim, isso é fundamental você entender.

Segundo Nietzsche, a consciência é a parte mais ínfima e a pior de tudo o que o indivíduo pensa; portanto, o inconsciente é o essencial da vida psíquica. Não existe um “eu” arquitetando coisas, existe força que produz pensamento. Eu, quando muito, assisto o que eu mesmo pensei, e consequentemente falei. É só o seu corpo, é tudo o que é, é só a imanência do corpo, é só a força vital; é só o corpo que, enquanto movido por uma energia, tem uma competência de articulação de símbolos, é só isso.

O que você poderia chamar de “eu”: a reunião de um corpo que pensa, que se movimenta, e que é movido por uma energia que oscila, e que oscila em função dos choques e dos encontros com outras energias. Não há nenhuma especificidade de você em relação a animais, plantas ou mesmo minerais.

Mas quem é o “eu”? Há um “eu” que habita nós mesmos? - Nietzsche nos responde através de Zaratustra: “Por detrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, se encontra um poderoso senhor e um sábio desconhecido - ele se chama si mesmo. Ele habita o teu corpo, ele é o teu corpo. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria. E quem sabe, aliás, para que o teu corpo necessita justamente da tua melhor sabedoria? Teu si mesmo se ri do teu eu e de seus saltos orgulhosos. ‘O que são para mim esses saltos e asas do pensamento’?, diz ele consigo. Um desvio para as minhas finalidades. Eu sou a andadeira do eu e aquele que infla os seus conceitos.”

Percebe-se que Nietzsche inverte os polos sagrados da metafísica, do Cristianismo, do platonismo, do dogmático e propõe o “corpo” enquanto a grande razão. Aqui não há uma alma, um espírito, um “eu”, uma substância subjetiva que está aprisionada no corpo, é o próprio corpo que és tu.

Aqui valeria uma comparação com os dois outros pensadores que também são pensadores da desconfiança, da suspeita, por que pensadores da suspeita? Porque suspeitam que a consciência não é senhora de si mesma, que são Marx e Freud.

Se você ler Marx, você dirá: aquilo que passa pela sua cabeça é a ideologia, e essa ideologia não se explica por si só, existe um inconsciente coletivo que é determinado pelas forças de produção e pelas relações de produção.

Se você ler Freud, você dirá: o que passa pela sua cabeça é a ponta do iceberg, que é determinado por um inconsciente que você não controla e do qual você obviamente não tem consciência porque senão não seria inconsciente.

Pois muito bem: qual é a diferença de Freud, Marx e Nietzsche? Por que existe uma diferença fundamental? Quando o analisando vai ao divã psicanalítico e começa a falar, o freudismo tem a pretensão de estabelecer sobre aquele discurso uma espécie de verdade, é a verdade do inconsciente que emerge na análise.

O analista, portanto, constrói uma gramática que relaciona o que o analisando diz com aquilo o que ele diz significa. E essa gramática é chamada de interpretação dos sonhos, e tem um lindo livro do Freud sobre isso. Então, o que é a psicanálise? é uma forma de construção de verdades sobre o inconsciente daqueles que se submetem a esse tipo de análise.

E o marxismo? É a convicção de que a sociologia identificará verdades sobre o que passa pela cabeça das pessoas enquanto ideologia. Eu não sei se você percebeu, mas quando Marx e Freud analisam o discurso de alguém, eles analisam na posição de cientista, na posição daquele que sabe o que o outro não sabe, na posição daquele que sai da ilusão e chega até a verdade. No caso de Marx, isso ainda é pior. Os marxistas, além de acreditarem na verdade, são dogmáticos; não só eles sabem a verdade, como só aquela é a verdade.

Nesse ponto, Nietzsche é infinitamente mais sofisticado. Por quê? Porque quando você vai analisar o mundo, quando você vai analisar um discurso, diz Nietzsche: a interpretação é por sua vez interpretável, e a interpretação da interpretação também é interpretável, e assim por diante, e haverá sempre uma caverna por detrás da caverna, haverá sempre um submundo por detrás das fundações, haverá sempre interpretações ao infinito.

Então, para que isso fique mais claro, imagine você no divã: você deita e começa a falar, aí vira o analista e diz: bom... eu vou interpretar o que você falou.

Para Freud morreu ali, para Nietzsche não. Quando o analista interpreta o que o outro falou, o que ele mesmo falou nada mais é do que o resultado das suas próprias forças vitais e, portanto, pode ser interpretado por um outro, que quando for interpretar vai falar das forças vitais dele, e quando mais um outro for falar vai também falar das suas próprias forças vitais. Em outras palavras: só há interpretações ao infinito.

O fato de que quando nós falamos sobre o mundo, o que nós falamos não é bem uma análise objetiva do mundo, mas é aquilo que as nossas forças vitais e os nossos estados de psique determinaram. E, portanto, evidentemente, quando Nietzsche escreve a sua obra, ele não diz: leia isso aqui porque isso aqui é a verdade sobre o mundo. De jeito nenhum. Melhorar a humanidade é a única coisa que você não deve esperar de mim, ele diz, isto aqui é a minha produção, isto aqui são as minhas forças.

Quando o psicanalista fala do discurso do analisando, não há no discurso do psicanalista nem uma vírgula de verdade a mais do que o próprio analisando falou. E se um outro analista analisar a análise desse analista, também não haverá nenhuma vírgula a mais de verdade. Por quê? porque todos estarão falando apenas o que as suas forças vitais estiverem determinando.

Por isso diz Nietzsche: toda filosofia é uma fachada, toda palavra é uma máscara, tudo é uma ilusão, nada mais é do que forças vitais em produção, em produção semiótica, em produção psíquica, só isso, nada mais do que isso.

* Prof. Clóvis de Barros Filho, filósofo, é professor de Ética da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Doutor em Direito pela Universidade de Paris e em Comunicação pela Universidade de São Paulo, professor de Ética da HSM Educação, e consultor de Ética da UNESCO. 

Texto extraído da fala do Prof. Clovis de Barros Filho no vídeo “Negar a fórmula e Viver a vida”


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