16 de outubro de 2025

REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS

Meus amigos, a perspectiva sociológica da reflexão sobre deus é auspiciosa e interessantíssima. Mas essa aula tem que chegar ao seu fim. Eu gostaria de trazer aqui duas reflexões estritamente contemporâneas. Em outras palavras, do século 21, para que não tenhamos ideia de que a reflexão sobre deus é uma coisa de gente velha.

A primeira, pós-moderna, é do sociólogo Michel Maffesoli, que discute a tolerância da sociedade pós-moderna com os desejos individuais. Ele contrasta essa era com a modernidade, onde identidades rígidas e a busca pelo “risco zero” oprimiam o indivíduo, reprimindo seus apetites e desejos.

Maffesoli argumenta que essa rigidez da modernidade foi responsável por grandes catástrofes, como o nazismo. A sociedade pós-moderna, por outro lado, permite subversões periódicas, como o carnaval, que funcionam como uma válvula de escape para o que foi reprimido. Ele descreve o Brasil como um exemplo de sociedade pós-moderna e equilibrada, que aceita a "parte do diabo" - a necessidade humana de transgredir ocasionalmente. Para Maffesoli, no lugar de um deus com valores absolutos, surgem sociedades que garantem essa parte do diabo, autorizando a subversão.

A segunda perspectiva é de Gilles Lipovetsky, outro pensador pós-moderno. Ele também contrasta o homem moderno, “engessado”, com o pós-moderno, que pode construir sua vida "à la carte", alternando entre atividades e crenças. Lipovetsky vê o pertencimento religioso como uma questão individual e privada, não mais pública. A religião e a noção de deus, portanto, fragmentam-se em função das necessidades metafísicas de cada um, tornando-se uma questão de consciência privada, e não de cultos institucionais.

A reflexão final aponta para o livro “O Espírito do Ateísmo”, do filósofo André Comte-Sponville, meu professor. A ideia central da obra é a distinção entre o espírito e a fé, que tem grandes consequências em nossa vida. Sponville explica essa proposta com duas histórias.

Primeiro, ele relata a reação de um padre após uma palestra em que professou seu ateísmo. Para sua surpresa, o padre o aplaudiu e concordou com tudo o que ele havia dito, argumentando que a crença em Deus, no fim das contas, tinha pouca importância. A segunda história é sobre dois judeus que, após concluírem que Deus não existia, foram surpreendidos no dia seguinte. Um deles viu o outro fazendo suas rezas matinais e perguntou o porquê. O outro respondeu: “E que é que Deus tem a ver com isso?”.

Essas duas histórias ilustram a proposta de Sponville, com a qual eu concordo: acreditar ou não em Deus é complexo, mas todos compartilhamos valores essenciais. Pertencemos a uma comunidade e temos uma intuição do que é certo e errado. Educamos nossos filhos para não roubar, matar ou violar, e esses valores, enraizados na civilização judaico-cristã, não exigem a crença em um ser transcendente. É possível ser admirador dos ensinamentos de Cristo e ser ateu, ou ser fiel aos valores judaico-cristãos sem acreditar na existência de um Deus criador.

A filosofia não voltará a buscar provas da existência de Deus, como faziam pensadores como Anselmo, Descartes ou São Tomás de Aquino. No entanto, ela continuará a falar de valores, mostrando que são aprendidos, historicamente construídos e que, mesmo sem valores absolutos, precisamos de critérios para viver. Essa fidelidade à nossa comunidade e cultura é o que nos guia.

A história da ideia de Deus continuará, pois o homem continuará a falar sobre isso. Seja Deus transcendente, imanente ou o próprio homem, a questão da sua existência ou da sua intervenção no mundo é algo que sempre nos ocupará. Deus importa muito, pois ele continuará a ser uma enorme fonte de critérios para que o homem possa viver. Dostoiévski resumiu essa ideia: “Já que Deus não existe, tudo é permitido. E já que tudo é permitido, a vida não tem sentido. E já que a vida não tem sentido, torna-se impossível viver.”

Transcrição de textos e vídeos do professor Clóvis de Barros Filho, filósofo e docente de Ética na Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA/USP).

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