CAMINHOS E ESCOLHAS: O caminho
escolhido sempre virá com tristezas; a ilusão é acreditar que
outro seria livre de problemas. Experimentamos apenas as dificuldades
da vida que temos. Um casamento, por exemplo, tem suas tristezas, mas
a vida de solteiro também tem as suas, como a solidão. A vida é
complexa e será sempre marcada por mais decepções do que alegrias.
Saber disso facilita encarar os desafios, pois não há vida fácil.
As dificuldades são apenas diferentes: uma namorada “feia” impõe
um desafio, enquanto uma “linda” traz outros, como o ciúme.
Não sou pessimista, mas repudio os “falsos profetas” que prometem a exclusão da tristeza seguindo protocolos. A tristeza é parte robusta da vida, sua matéria-prima. As alegrias são momentos pontuais que dão esperança. Quanto menos se espera do mundo, mais se aprecia o pouco; a esperança excessiva leva à frustração. A felicidade está em entender a vida em sua crueza e desfrutar dos pequenos instantes de alegria.
AMOR-FATI (AMOR AO DESTINO): O conceito de Amor-fati (“amor ao destino”), inspirado em Nietzsche, convida a rejeitar modelos mentais que escravizam, como ideais superiores que negam a vida terrena e seus prazeres. É uma crítica aos refúgios mentais como paraísos ou deuses que agem como muletas. A proposta é amar o mundo como ele é, no presente. O passado e o futuro são vistos como fontes de ilusão ou esperança ignorante. Nietzsche resume: não apenas suportar o necessário, mas amá-lo.
Amor-fati não é resignação, mas a afirmação e amor pelo real. Estar no “amor real” exige despir-se do idealismo, como a crença em verdades absolutas. Em vez de dizer “eu te amo” como um estado permanente (ignorando a natureza oscilante das emoções), o ideal é reconhecer o amor como afeto momentâneo, valorizando a singularidade de cada encontro.
O autor questiona o altruísmo absoluto, preferindo a visão de Spinoza: o altruísmo, no fundo, busca a própria alegria. Ele prefere a perspectiva de que corpo e alma caminham juntos, concluindo que não se deve ir contra a própria alegria ou a própria potência de agir.
OS INIMIGOS DA VIDA: Duas coisas atrapalham a vida: o divertimento e o tédio. O divertimento é um ciclo de insatisfação: desejar, conseguir e imediatamente buscar outra coisa, uma busca incessante pela saciedade que nunca chega. O tédio surge de uma rede de utilidade, onde o valor das coisas é sempre externo a elas (o valor do carro é o destino; o da faculdade é o emprego).
A perspectiva de Nietzsche exige uma avaliação que parte de si mesmo, sem fatores transcendentes. O valor das coisas é determinado pelo desejo e pela vontade individual. O conceito do eterno retorno questiona: você gostaria de viver sua vida, com cada momento de dor e alegria, inúmeras vezes? A resposta determina se a sua vida é boa. É um desejo de eternizar um instante, sintoma de uma vida bem vivida.
Nietzsche, um filósofo vitalista, via a transcendência como “muletas metafísicas” para quem não suporta a vida como é. O super-homem é quem vive sem essas muletas, abraçando o “amor-fati”. O erro não está no mundo, mas na nossa avaliação sobre ele.
O DEUS DE SPINOZA: O Deus de Spinoza é uma segunda perspectiva de um deus transcendente, mas diferente do criador: ele é o próprio mundo, o todo que existe (Deus ou a Natureza). Spinoza rejeita a ideia de propósito, vendo o universo como caótico. Esse Deus compartilha atributos com o cristão: é onipotente, onisciente, onipresente e eterno.
A eternidade pertence ao todo (o universo), não às partes (nós, que morremos). Morremos como partes de Deus, que, por ser o todo, permanece eterno. Para Spinoza, Deus é criador e criatura ao mesmo tempo, diferente da visão cristã.
Em um exemplo pessoal, o autor contrasta o Deus cristão, que é um terceiro que vê e julga (o padre lhe disse que Deus o via no banheiro), com o Deus de Spinoza. O Deus de Spinoza é o próprio ato, o movimento, o orgasmo, a depressão pós-orgásmica; ele é o que é.
Sendo o que é, o Deus de Spinoza não julga e não condena, pois ele não é terceiro em relação à conduta, ele é o próprio agente. Ele é o real como ele é, e por isso, não carrega consigo nenhuma ideia de justiça, vista como um delírio humano.
O DEUS CRIADO PELO HOMEM: A discussão passa para o Deus criado pelo homem. Ludwig Feuerbach, em A Essência do Cristianismo, argumenta que o homem inventou Deus para suprir a necessidade de um organizador ou justiceiro que controlasse o que estava dentro, já que nunca entendeu que sua existência é consequência exclusiva de si mesmo e da materialidade. Deus é, portanto, uma consequência direta das condições materiais de vida.
Karl Marx, discípulo de Feuerbach, viu que o homem inventou não só Deus, mas um culto e comportamentos que seriam sua vontade. A famosa frase “A religião é o ópio do povo” resume sua visão. Para Marx, fenômenos como religião, moral e estado são explicados pela matriz material e social, pela produção de bens. Deus é o resultado da luta de classes (burgueses vs. proletários), um “deus burguês”, e a religião, o “ópio do proletariado”.
Deus contribui para que as
pessoas suportem a vida que lhes foi dada e evita que se insurjam
contra as discrepâncias materiais, diminuindo a exigência por uma
repartição mais equitativa dos bens. A religião é um anestésico
que impede a reivindicação do que seria justo.
Émile Durkheim, pai da sociologia, via a religião como um fato social. Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, explica que ela é um trabalho social de classificação do mundo em sagrado e profano. Deus é uma das coisas que a sociedade considera sagrada. O sagrado é o que a sociedade define como tal; é uma necessidade social para a organização da sociedade.
Pierre Bourdieu, um discípulo, concorda, mas adiciona que a definição do sagrado é obra de especialistas (agentes legitimados) que competem no “campo religioso” pelo monopólio dessa definição, buscando prestígio. Essa luta é disfarçada como respeito às divindades.
REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS: Duas reflexões contemporâneas (século XXI) fecham a aula. Michel Maffesoli discute a tolerância da sociedade pós-moderna com os desejos individuais, contrastando com a rigidez da modernidade que reprimia os apetites e gerou catástrofes como o nazismo. A sociedade pós-moderna permite "subversões periódicas" (como o carnaval) e aceita a "parte do diabo", surgindo no lugar de um Deus de valores absolutos.
Gilles Lipovetsky vê o homem pós-moderno construindo sua vida "à la carte", alternando crenças. O pertencimento religioso torna-se uma questão individual e privada, não mais pública. A religião e a noção de Deus fragmentam-se em função das necessidades metafísicas de cada um.
A reflexão final, baseada em André Comte-Sponville (O Espírito do Ateísmo), distingue o espírito da fé. É possível ser ateu e, ainda assim, compartilhar valores essenciais e a intuição do que é certo e errado. Os valores são historicamente construídos e, mesmo sem valores absolutos, a fidelidade à comunidade e cultura nos guia. A filosofia não buscará mais provas da existência de Deus, mas continuará a falar de valores.
A história da ideia de Deus continuará. Seja Ele transcendente, imanente ou o próprio homem, a questão da sua existência ou intervenção sempre nos ocupará. Deus importa muito, pois continuará a ser uma enorme fonte de critérios para que o homem possa viver. A máxima de Dostoiévski resume: “Já que Deus não existe, tudo é permitido. E já que tudo é permitido, a vida não tem sentido. E já que a vida não tem sentido, torna-se impossível viver.”
Excertos de transcrição de textos e vídeos do professor Clóvis de Barros Filho, filósofo e docente de Ética na Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA/USP).
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