3 de dezembro de 2012

A música de minha vida


Religião: religare e relegere. Ouvir concentrada mente a Partita II de Bach constitui, para mim, a experiência religiosa por excelência: o resta belecimento do vínculo sagrado com a totalidade do universo (religare) e o retorno a uma síntese primeira, anterior à cisão da autoconsciência e à dor de formas repartidas (relegere). Acima de tudo que conheço, re verencio ou possa conceber, a pureza e a perfeição austera desses sons traduzem, aos meus ouvidos, a idéia de absoluto.
O que pode qualquer metafísica ou religião instituída, calcada no miasma de uma doutrina, diante da verdade infinita - a espiritualidade em estado puro - que emana da música de Bach? Se o divino e o transcendente se rendem à força criadora do espírito humano, então é precisamente aqui, na geometria sublime dessa arquitetura para além do tempo e do espaço, que encontro a sua mais bela e definiti­va expressão. Templo sonoro do meu panteísmo.
Ouvir bem - estar minimamente à altura do que se ouve - é trabalho duro, normalmente precedido de um pequeno ritual. Silêncio, isolamento e concentração são essenciais: olhos cerrados, respiração apaziguada, corpo na horizontal. O valor da audição depende de uma ascese espiritual que, no cotidiano da metrópole, nem sempre pode ser des­frutada. A dádiva, muitas vezes, reside apenas em lembrai que esse espaço-tempo do sagrado existe, ou seja, que ele está lá, ao nosso alcance, como um elixir que nos permite escapar do circuito profano das miudezas do mundo - a cidade em que vozes e buzinas se confundem - para in­gressar por inteiro no universo paralelo da espiritualidade atemporal de Bach.
A vida oprime, o som liberta. Conside­ro impossível ouvir devidamente a Partita II na companhia de quem quer que seja.
O meu primeiro contato com a Partita II se deu quando eu tinha 16 anos. Obra de um acaso feliz. Um amigo de escola, com quem costumava conversar longamente sobre música e literatura, apareceu um dia dizendo que ouvira a Ciaccona, num disco de uma coleção seriada sobre a história da música clássica que estava sendo vendida na época em bancas de jornal.
Ocorre que ele discorreu com tanto entusiasmo e paixão sobre a obra que tive imediatamente curiosidade de conhecê-la. Comprei um exemplar do fascículo poucos dias depois da nossa conversa e colo­quei o disco na pequena vitrola que tinha em meu quarto. Por maior que fosse a minha expectativa (e confesso que cheguei a suspeitar que o meu amigo exagerava em sua calorosíssima apreciação), como imaginar o que estava prestes a encontrar?
Naquela altura, eu já conhecia alguma coisa de mú­sica erudita, especialmente na tradição romântica alemã, mas logo me dei conta de que aquilo pertencia a uma outra ordem de expressão e espiritualidade. A experiência foi ar­rebatadora. Como era possível que um único instrumento apenas - as quatro cordas de um violino - pudesse defla­grar uma arquitetura polifônica de tamanha beleza e com­plexidade? Que misterioso dom de transporte era aquele, capaz de nos conduzir a um mundo psicoacústico de for­mas puras e perfeitas - um mundo sem máculas e arestas e diante do qual aquele em que nos é dado existir não pas­sa de arremedo e exílio? Tive a certeza instantânea de que aqueles sons me acompanharam pelo resto da vida.
A passagem do tempo confirmou plenamente aquela intuição juvenil. Nada me faz sentir de maneira tão clara os limites de todas as demais formas conhecidas de expressão artística - poesia, artes plásticas, teatro, arquitetura, roman­ce, cinema etc. - quanto uma audição ideal da Partita II, coroada pelo monumental quinto movimento (Ciaccona). A música permite um grau de absorção e imersão a quem a ela se entrega que nenhuma outra arte é capaz de proporcionar. Nela apenas se pode abstrair de tudo o que existe e mergu­lhar no universo paralelo da completa transcendência.
A alma embalada pelo som quando sonha, desligada do corpo e dos demais sentidos, refaz o mundo a seu modo - é criadora e criação de si mesma. Para onde vai o tem­po enquanto estamos mergulhados, em estado de absorta concentração, na música das esferas de Bach? Os pouco mais de 25 minutos da Partita II bastam para escancarar o que há de errado com a idéia de se medir e domesticar o tempo, submetendo-o à contagem uniforme e mecânica dos relógios - o intervalo finito demarcado por suas notas de abertura e encerramento contém em si a eternidade.
■EDUARDO GIANNETTI é sociólogo e economista for­mado pela USP e Ph.D, em economia pela Universidade de Cambridge. É professor do IBMEC São Paulo e autor de, entre outros livros, O valor do amanhã (Companhia das Letras, 2005). Temporada Brasil 2006
J.S. BACH – Sonatas e partitas (partita II e ré menor – BMW 1004), por Sándor Végh
FONTE: REVISTA DIAPASON – nr. 1/ 2006

22 de novembro de 2012

Metafísica dos vasos comunicantes

ORIGEM: Medo das forças “misteriosas” da natureza (trovões, raios, enchentes, vulcões, maremotos, terremotos, vendavais) + Medo da fome, de animais, de doenças, do sofrimento + Medo da morte, do desconhecido.
® Falta de interpretação dos fenômenos naturais. Movimentação do sol e da lua. Estrelas cadentes. Imensidão do Universo.
® num mundo cheio de mistérios, o homem primitivo imaginou um ser invisível, poderoso, como o criador dos artefatos existentes no mundo e autor dos fenômenos da natureza. A esse ser imaginário chamou de deus.
SACRALIZAÇÃO: Ruptura entre o natural e o sobrenatural, introduzindo no sobrenatural uma força ou potência para realizar aquilo que os humanos julgavam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades humanas. Proporciona superioridade e poderio de alguns sobre outros, sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos. Opera o encantamento do mundo, habitado por forças maravilhosas e poderes admiráveis que agem magicamente à distância, enlaçando entes diferentes com laços secretos e eficazes. Pode suscitar devoção e amor, repulsa e ódio. Esses sentimentos suscitam um outro: o respeito feito de temor. Nasce, aqui, o sentimento religioso e a experiência da religião.
® Natural x Sobrenatural; Material x Espiritual = cria diferença ® oposição, antagonismo (para dominar).
® Sobrenatural (crença → desconhecimento → ignorância) = potência (força → poder → pré-figura deus!).
® Espiritual (crença → desconhecimento → ignorância) = incognoscível (inexplicável → mistério → temor).
RELIGIÃO: Códigos morais, de bom comportamento, que aspiram à vida eterna. A Religião pressupõe que, além do sentimento da diferença entre natural e sobrenatural, haja o sentimento da separação entre os humanos e o sagrado, mesmo que este habite os humanos e a Natureza.
® Nasceu da superstição (crença infundada, ignorância), passando a servir a tirania (opressão).
® É nefasta porque mantém os homens em estado de ignorância das verdadeiras causas de todas as coisas, da origem humana, do poder político e das leis.
LEI DIVINA: Os deuses são poderes misteriosos e vontades. Misteriosos, porque suas decisões são imprevisíveis e, muitas vezes, incompreensíveis para os critérios humanos de avaliação. Vontades, porque o que acontece no mundo manifesta um querer pessoal, supremo e inquestionável. A religião, ao estabelecer o laço entre o humano e o divino, procura um caminho pelo qual a vontade dos deuses seja benéfica e propícia aos seus adoradores. A vontade divina pode tornar-se parcialmente conhecida dos humanos sob a forma de leis, isto é, decretos, mandamentos, ordenamentos, comandos emanados da divindade.
® As leis são instuituidas pela vontade de Deus, reveladas a alguns que têm o direito divino, com poderes para dominar e comandar.
MORTALIDADE: Toda religião explica não só a origem da ordem do mundo natural, mas também do mundo humano. No caso dos humanos, a religião precisa explicar por que são mortais. O mistério da morte é sempre explicado como expiação de uma culpa original, cometida contra os deuses. No princípio, os homens eram imortais e viviam na companhia dos deuses; a seguir, uma transgressão imperdoável tem lugar e, com ela, a grande punição: a mortalidade.
IMORTALIDADE: Algumas religiões afirmam que o corpo humano possui um duplo, feito de outra matéria, que permanecerá após a morte, usando outros seres para relacionar-se com os vivos. Certas religiões acreditam que o corpo é habitado por uma entidade – espírito, alma, sombra imaterial, sopro -, que será imortal se os decretos divinos e os rituais tiverem sido respeitados pelo fiel. Por acreditarem firmemente numa outra vida – que pode ser imediata, após a morte do corpo, ou pode exigir reencarnações purificadoras até alçar-se à imortalidade -, as religiões possuem ritos funerários, encarregados de preparar e garantir a entrada do morto na outra vida.
Ø    RELIGIÕES = Códigos morais, de bom comportamento + vida eterna.
Ø    UNIVERSO = Grande oceano com seus vasos comunicantes (a Natureza, o Tudo).
Ø    ENTE = Consciência individual.
Ø    SER = Consciência coletiva.
VASOS COMUNICANTES: Todos os atos que praticamos, através de um sistema de vasos comunicantes, acabam repercutindo no mundo físico, no planeta e nos demais seres vivos. O Universo (o Tudo) é como se fosse um Grande Oceano, interligado com os Entes, por mares, lagos, rios e arroios.  
® Os Entes (vasos), depois de extinguir-se o prazo de validade, são despejados na margem do oceano onde evoluíram.
® O líquido/fluído (consciência individual) ao ser despejado na margem, interage imediatamente com o Grande Oceano (o Universo), através de “vasos comunicantes”.
® Novos Entes (vasos) são enchidos com o líquido/fluído da margem do Grande Oceano de seus ancestrais, começando o prazo de validade desses.
® Os Entes são distintos, pois embora pertençam ao Grande Oceano (ao Tudo, ao Ser), guardam algumas características dos lugares onde foram enchidos.
® O Grande Oceano (a Natureza) é reciclado a todo o instante com o despejo ininterrupto de líquidos/fluídos (consciência singular) de Entes (vasos) que vão se extinguindo.
CONSCIENTE COLETIVO: O consciente coletivo (o Ser) é constituído por um patrimônio coletivo da espécie humana (Entes). Esse conteúdo coletivo é essencialmente o mesmo em qualquer lugar e não varia de pessoa para pessoa.
® Nesse consciente coletivo, os temas importantes para a humanidade vão evoluindo até o momento em que eles são absorvidos no imaginário popular em forma de lendas e superstições e em manifestações artísticas.
® Os Entes (vasos) carregam armazenadas no inconsciente coletivo, informações de um enorme banco de dados (o Ser, o Tudo), onde ficam todas as impressões da humanidade, desde o início dos tempos.
® Os arquétipos presentes no inconsciente coletivo são universais e idênticos em todos os indivíduos e manifestam-se simbolicamente em religiões, mitos, contos de fadas e fantasias.
® Entre os principais arquétipos estão os conceitos de nascimento, morte, sol, lua, fogo, poder e mãe.
® Nos sonhos, visões, êxtases e devaneios espirituais (vidas passadas, EQMs, etc.), podemos ter acesso, através do cérebro, aos cantos mais profundos desse banco de dados (do Ser, do Tudo).
GENES: Os genes são os responsáveis pela capacidade, que todos os seres vivos (Entes) possuem, de transmitir informação (o fluído Universal, o Consciente Coletivo) aos descendentes. Levamos nos genes, as memórias de nossos ancestrais, seus instintos, a personalidade, a individualidade consciente de todos os que participaram na formação do nosso Ente.
® O conhecimento pretérito, apenas parece ser de “vidas passadas”, mas em verdade decorre da memória incorruptível dos genes (do Ser), constituída por bytes, bytes e mais bytes de informação digital pura.
® As explicações místicas, são simplesmente resultantes de arquétipos oriundos de experiências ancestrais, que se arquivaram nas delicadas estruturas nervosas e posteriormente são transmitidas aos descendentes através de genes ao longo de gerações.
® A crença na imortalidade da alma, comum a quase todas as religiões, não passa da percepção, em nível consciente, da imortalidade do Ser (o Universo, o Tudo). São o resultado das complexas reações físico‑químicas operadas no cérebro, em resposta aos estímulos externos e internos captados pelos sentidos ou outros meios, e levados àquele órgão via rede nervosa de todo o organismo.
® Herdamos as predisposições de temer serpentes e a escuridão porque nossos ancestrais experimentaram tais medos ao longo de um sem-número de gerações. Estes medos ficaram-lhes gravados no cérebro. Os conteúdos do inconsciente coletivo estimulam um padrão pré-formado de comportamento pessoal que o indivíduo seguirá desde o dia do nascimento.
ALMA OU ESPÍRITO: Não existe nenhuma alma ou espírito individual diferente do Ente. A alma ou espírito do Ente é apenas a inteligência agregada das células (dos genes). Não existe alma ou espírito individual além da inteligência animal, além do cérebro. É o cérebro que nos mantém vivos. Não há nada além disso. Toda essa conversa de uma existência (consciência individual) para nós, além do túmulo, está errada. Nasce de nosso apego à vida - nosso desejo continuar vivendo - nosso medo de chegar a um fim como indivíduos.
® Corpo e alma = Uno (uma coisa só). Unidade imanente ao Ente. Permanência do fim. Que existe sempre e é inseparável dele. Que não pode ser encontrada do lado de fora.
® Deus (o Ser, o Tudo, a Natureza, o Universo) é imantente à Natureza e somente pode ser conhecido pela razão.
ENERGIA: Energia é igual a matéria, bastando multiplicar pelo quadrado da velocidade da luz. É nisto que consiste o princípio da fórmula E=m.c². Tudo é energia, mesmo que não pareça, pois matéria é energia com “massa em repouso”, ou seja, a massa do objeto quando sua velocidade é nula. Qualquer atividade que resulte numa mudança de um estado inicial de um objeto requer energia.
MATÉRIA: Matéria e energia são a mesma coisa, só que apresentadas de forma diferente. Massa é uma espécie de âncora da matéria. Sem massa, a matéria não poderia se organizar estruturas como átomos, moléculas, células e seres vivos. Sem massa não existiria repouso. Tudo ao nosso redor é constituído de matéria. Dos mesmos átomos, dos mesmos elementos, da mesma matéria que compõe o restante do Universo. Todas as estrelas, um dia, foram massas enormes de hidrogênio puro, comprimido, quentíssimo, girando pelo espaço. Toda a matéria que conhecemos por aqui veio delas. Tudo veio das estrelas.
TUDO ACABA! Um dia a Terra desaparecerá. Apaga-se o sol, o sistema solar acaba e o Universo nem sequer se dará conta de que existimos. Ainda assim, em algum canto do Universo, no Grande Oceano, um mar, um lago, um rio ou um arroio, continuará existindo...
Ø    UNIVERSO: O Tudo (o Ser) ® Um Grande Oceano (o Consciente Coletivo) que interage com os Entes através de vasos comunicantes (o Grande Oceano). Não foi criado, sempre existiu. A ordem vem do “design” da regularidade natural, não havendo qualquer necessidade de uma explicação mais ampla.
Ø    O ENTE: Consciência individual (o Consciente Coletivo singular) ® aparente, sensível e mortal.
Ø    O SER: Consciência coletiva (o Universo, a Natureza, o Tudo) ® amórfico, insensível e imortal.
Ø    RELIGIÕES: Códigos morais, de bom comportamento, que aspiram à vida eterna da consciência individual.
Ø    DEUS: Sacralização do Ser ® Incognoscível (inexplicável ® mistério ® crença). Um ser antropomórfico (pessoa), com pensamentos e emoções.
Ø    A LEI: O Universo (a Natureza, o Tudo) é regido por uma “Lei” impessoal, imanente, perfeitamente racional e acessível. A Lei funciona automaticamente. Quem se harmoniza com a Lei, goza; quem se opõe, sofre. A Lei é essencialmente neutra. A Lei é totalmente indiferente à dor, ao sofrimento, à maldade, à bondade, à beleza, à feiúra ou a qualquer outra coisa que possamos valorizar. 

30 de abril de 2012

Um universo a partir do nada

O cosmologista americano Lawrence Krauss Krauss, de 57 anos, é mundialmente conhecido por seu trabalho teórico, por livros como A física de Jornada nas Estrelas e por seus programas no Discovery Channel. Em seu novo livro, A universe from nothing (Um universo a partir do nada, ainda inédito no Brasil), ele parte das leis da física para dizer que os mistérios em torno da origem do Universo são uma mistificação. Nesta entrevista, ele diz que a ciência finalmente é capaz de explicar como o Universo surgiu. “Os religiosos afirmam saber que Deus criou o Universo. Isso é preguiça intelectual”, afirma. 
Quando questionado se a crença em Deus tornou-se obsoleta com o avanço da ciência, o cientista respondeu,”O avanço da física, da química e da biologia nos fez desvendar o funcionamento da matéria e dos fenômenos biológicos. Ao mesmo tempo, esse avanço foi reduzindo o alcance do termo milagre até deixá-lo restrito ao que teria existido antes do big bang, a explosão primordial que criou o Universo há 13,7 bilhões de anos. Agora, o milagre divino perdeu esse último bastião. A cosmologia do século XX chegou ao ponto em que podemos falar sobre a criação e a evolução de todo o Universo, um tema que não é mais do domínio exclusivo da teologia.”.
Krauss foi rígido ao criticar os que acreditam em Deus, “Os religiosos que afirmam que conhecem as verdades fundamentais… É inacreditável. Eles afirmam saber que Deus criou o Universo. Isso é preguiça intelectual. A ciência lida muito bem com a existência de mistérios à espera de ser revelados. Sempre haverá perguntas sem respostas e mistérios a descobrir. Os milagres se tornaram obsoletos.”.
Comentando sobre seu livro, o cientista levanta a hipótese do Universo ter surgido a partir do nada e que há a possibilidade de haver mais universos existentes, o que ele chamou de “multiuniverso”, e sobre as condições futuras do universo citou ironicamente, “Prefiro viver hum universo onde a vida é breve e preciosa a noutro onde o sentido da vida nos é ditado por um Saddam Hussein dos céus!”
Traçando um paralelo entre a ciência e a religião, o físico argumentou, “Ninguém precisa ser um especialista em cosmologia para apreciar o panorama do surgimento e da evolução do Universo, da mesma forma como não é preciso ser músico para apreciar a música de Bach (que, aliás, era muito complexa!). Sim, as versões da ciência são mais complicadas que as da religião, mas também são muito mais interessantes. O Universo tem uma imaginação muito maior que a nossa e seus fenômenos que observamos, como a explosão de supernovas ou a criação de buracos-negros, são muito mais fascinantes do que os contos de fadas criados por gente que viveu há milhares de anos, muito antes de descobrirmos que a Terra órbita o Sol e que não estamos no centro do Universo.”.
Ao final da entrevista, Lawrence Kraus disse não se considerar um ateu, mas um antiteísta, “Não posso provar sem sombra de dúvidas que Deus não existe, mas posso afirmar que preferiria muito mais viver num universo em que ele não exista.”, e ao ser questionado se Deus se tornou irrelevante para a sociedade, respondeu, “Porque eu penso que Deus é uma invenção da humanidade, minha resposta é não. Se existisse um Deus, ele certamente teria deixado de se preocupar com os desígnios do cosmos logo depois de criá-lo, há 13,7 bilhões de anos, pois tudo o que aconteceu desde então pode ser explicado pela ciência. Não, Deus talvez não seja irrelevante. Ele é redundante.”.

ÉPOCA – O que aprendemos sobre a origem do Universo, graças ao avanço da ciência, tornou obsoleta a crença em Deus?
LAWRENCE KRAUSS – Até o século XVI, a religião detinha o monopólio da explicação dos mistérios da criação. A responsabilidade pela criação de tudo era divina, e ai de quem duvidasse! Aquele monopólio da fé começou a ser solapado a partir da obra de Copérnico (Nicolau Copérnico, astrônomo polonês do século XV) e a de Galileu (Galileu Galilei, astrônomo italiano do século XVI), que substituíram o milagre metafísico pela realidade física. Quando, há 300 anos, Newton (Isaac Newton, físico e matemático inglês do século XVII) explicou que o movimento dos planetas podia ser compreendido por meio de leis físicas bem simples que não requeriam a intromissão dos anjos, tudo mudou. O avanço da física, da química e da biologia nos fez desvendar o funcionamento da matéria e dos fenômenos biológicos. Ao mesmo tempo, esse avanço foi reduzindo o alcance do termo milagre até deixá-lo restrito ao que teria existido antes do big bang, a explosão primordial que criou o Universo há 13,7 bilhões de anos. Agora, o milagre divino perdeu esse último bastião. A cosmologia do século XX chegou ao ponto em que podemos falar sobre a criação e a evolução de todo o Universo, um tema que não é mais do domínio exclusivo da teologia.
ÉPOCA – Os religiosos sempre disseram que há algumas questões fundamentais para as quais nenhuma teoria científica jamais encontrou respostas. Ainda não é o caso?
KRAUSS – Não é nem nunca foi o caso. A religião alegava ter as respostas para as perguntas mais básicas do Universo e da vida antes mesmo de essas perguntas terem sido feitas. A religião também afirma que suas respostas são verdades inquestionáveis. Ora, nós, cientistas, somos movidos pela dúvida. O que move nossa curiosidade é a busca de respostas para os mistérios da natureza. Sabemos que não temos todas as respostas e que as respostas que temos não são verdades definitivas. Que questões ficariam sem resposta? Só o tempo e o esforço concentrado de pesquisa dirão. Por isso, não podemos nos deixar satisfazer com as respostas científicas já reveladas nem descansar sobre os louros conquistados, relegando a busca de novas respostas que tenham o poder de revelar uma visão mais profunda da natureza.
ÉPOCA – Os religiosos afirmam que a humanidade jamais descobrirá as verdades mais fundamentais, como a origem do Universo e como surgiu a vida.
KRAUSS – Jamais saberemos se essas são de fato verdades inatingíveis se não tentarmos elucidá-las. Os religiosos afirmam que conhecem as verdades fundamentais... É inacreditável. Eles afirmam saber que Deus criou o Universo. Isso é preguiça intelectual. A ciência lida muito bem com a existência de mistérios à espera de ser revelados. Sempre haverá perguntas sem resposta e mistérios a descobrir. Os milagres se tornaram obsoletos.
ÉPOCA – A ciência ensina que o Universo começou com o big bang e que antes dele não havia nada.
KRAUSS – A ciência nos ensina que houve um big bang, mas não diz o que havia antes. Em meu livro, explico por que, com base nos conhecimentos de ponta atuais, é plausível imaginar a hipótese de que o Universo tenha surgido a partir do nada. E, a partir do nada, o Universo teria evoluído por meio de processos naturais que levaram à formação de átomos, moléculas, estrelas, planetas, galáxias e vida.
ÉPOCA – Como o Universo surgiu do nada?
KRAUSS – Nosso Universo tem todas as características de um universo criado a partir do nada. Uma das descobertas mais notáveis da física moderna é que o vácuo espacial não é vazio. O vácuo pode ser inteiramente vazio de matéria, mas não de energia. Se pudéssemos observar o vácuo em dimensões infinitamente pequenas e lapsos de tempo infinitamente curtos, muito menores e mais curtos do que a tecnologia atual é capaz de fazer, veríamos que o vácuo é tudo, menos estático, e que nele partículas pipocam a partir do nada e desaparecem instantaneamente. Em determinadas condições, entretanto, essas partículas virtuais não precisariam necessariamente desaparecer. Elas poderiam não só continuar existindo, como se multiplicar, dando origem a um big bang e a um novo universo em expansão. A evidência de que isso pode ter sido realmente o caso da origem de nosso Universo é um feito notável.
ÉPOCA – Aconteceu apenas uma vez? O pipocar de partículas não poderia ter criado outros universos?
KRAUSS – Sim, tudo leva a crer que é o caso, embora não tenhamos como provar. Podemos viver num “multiverso”. Nosso Universo pode ser apenas um entre infinitos outros de um “multiverso que é eterno e infinito”. Prefiro viver num universo onde a vida é breve e preciosa a noutro onde o sentido da vida nos é ditado por um Saddam Hussein dos céus!
ÉPOCA – Os religiosos afirmam que Deus é anterior ao Universo e existiria antes do big bang.
KRAUSS – O principal problema dessa noção da criação é que ela requer a existência de alguma coisa que anteceda o Universo, de modo a poder criá-lo. É aí que quase sempre entra a noção de Deus, alguma entidade que existiria em separado do espaço, do tempo e da realidade física. Para mim, Deus não passa de uma solução semântica fácil para uma questão tão profunda como a criação. Os religiosos nunca tocam na questão da criação de Deus, pois essa é ainda mais confusa do que a solução religiosa que deram para a criação do Universo. Para os religiosos, Deus simplesmente existe, não importando quantas e quão fortes sejam as evidências que a ciência fornece para indicar a extrema improbabilidade de tal coisa ser verdade.
ÉPOCA – O Universo se expandirá para sempre? Num futuro remoto, as galáxias desaparecerão, as estrelas evaporarão e o cosmos voltará ao nada? Saber disso não torna a vida sem sentido?
KRAUSS – A vida não precisa ter nenhum sentido, a não ser aquele que damos a ela. Por que ficarmos deprimidos? Para mim, essa é uma imagem revigorante. Justamente porque a vida é efêmera, todos nós deveríamos tirar o máximo proveito do breve momento que desfrutamos sob o sol. Deveríamos aproveitar ao máximo o fato de evoluirmos com uma consciência que nos possibilita apreciar a beleza do cosmos, ao mesmo tempo que buscamos melhorar a vida na Terra. Prefiro viver num universo onde a vida é breve e preciosa a noutro onde o sentido da vida nos é ditado por um Saddam Hussein dos céus!
ÉPOCA – O senhor diz que vivemos num momento especial da história do Universo. Como assim?
KRAUSS – O Universo tem 13,7 bilhões de anos. Ele é muito antigo. Quando olhamos o infinito futuro a nossa frente, o Universo ainda é muito jovem. Todas as evidências de que um dia há 13,7 bilhões de anos aconteceu um big bang ainda podem ser vistas por meio de nossos observatórios astronômicos. É o que acontece quando os astrônomos verificam que todas as galáxias estão se afastando cada vez mais rápido umas das outras. Num futuro distante, as galáxias estarão tão longe de nossa Via Láctea que não poderão mais ser observadas. Elas desaparecerão no breu cósmico. Para todos os efeitos, será como se jamais tivessem existido. Uma civilização que viva num planeta da Via Láctea naquele futuro jamais saberá como o Universo surgiu.
ÉPOCA – Para entender e aceitar a origem do Universo como descrita pela ciência, é preciso ter bom nível cultural e intelectual, pois não se trata de conceitos simples. A religião lida com conceitos que podem ser apreendidos por qualquer criança.
KRAUSS – Ninguém precisa ser um especialista em cosmologia para apreciar o panorama do surgimento e da evolução do Universo, da mesma forma como não é preciso ser músico para apreciar a música de Bach (que, aliás, era muito complexa!). Sim, as versões da ciência são mais complicadas que as da religião, mas também são muito mais interessantes. O Universo tem uma imaginação muito maior que a nossa e seus fenômenos que observamos, como a explosão de supernovas ou a criação de buracos-negros, são muito mais fascinantes do que os contos de fadas criados por gente que viveu há milhares de anos, muito antes de descobrirmos que a Terra órbita o Sol e que não estamos no centro do Universo.
ÉPOCA – Nos últimos anos, muitos cientistas e intelectuais começaram a defender a bandeira do ateísmo. É o caso de dois célebres ingleses, o biólogo Richard Dawkins e o físico Stephen Hawking. O senhor pertence a esse movimento?
KRAUSS – Acho que sim. As pessoas com frequência me colocam ao lado de Dawkins e Hawking, o que me enche de orgulho. Mas prefiro pensar em mim não como um ateu, e sim como um antiteísta. Não posso provar sem sombra de dúvidas que Deus não existe, mas posso afirmar que preferiria muito mais viver num universo em que ele não exista.
ÉPOCA – Deus se tornou irrelevante para a humanidade?
KRAUSS – Porque eu penso que Deus é uma invenção da humanidade, minha resposta é não. Se existisse um Deus, ele certamente teria deixado de se preocupar com os desígnios do cosmos logo depois de criá-lo, há 13,7 bilhões de anos, pois tudo o que aconteceu desde então pode ser explicado pela ciência. Não, Deus talvez não seja irrelevante. Ele é redundante. 

27 de abril de 2012

Freud além da alma

Texto introdutório do filme: “Freud além da alma”: “Desde a Antiguidade, houve três grandes mudanças na ideia do homem sobre si mesmo. Três grandes golpes afetaram nossa vaidade (ego).
1) Antes de Copérnico, acreditávamos ser o centro do Universo, que todos os corpos celestes giravam ao nosso redor, mas o grande astrônomo derrubou este conceito, e fomos forçados a admitir que nosso planeta é apenas um dentre os muitos que giram ao redor do sol, e que há outros sistemas além do nosso e incontáveis mundos.
2) Antes de Charles Darwin, o homem acreditava ser uma espécie única, completamente separada do Reino Animal. Mas o grande biólogo nos fez ver que o nosso organismo físico – por mais que pareça complexo, devo acrescentar – é o produto de um vasto processo evolutivo cujas leis em nada diferem daquelas dos animais.
3) Antes de Sigmund Freud, o homem acreditava que o que dizia e fazia era um produto de sua vontade consciente. Mas o grande psicólogo demonstrou a existência de outra parte de nossa mente que funciona no mais obscuro segredo e que pode até comandar nossas vidas. Esta é a história da entrada de Freud numa região tão escura quanto o próprio inferno, o inconsciente humano e de como ele o iluminou.”