19 de março de 2010

Sagan e sua fé

No último capítulo (no vale das sombras) do Livro "Bilhões e Bilhões - Reflexões sobre Vida e Morte na Virada do Milênio”, Editora Companhia das Letras - 1998, Carl Sagan faz a narrativa da sua infeliz doença (mieloesclerose). É um capítulo doloroso de ler - e ao mesmo tempo maravilhoso, pois Carl Sagan revela a sua imensa lucidez e inteligência numa situação onde é fácil perder toda a dignidade.

“Já encarei a morte seis vezes. E seis vezes a morte desviou seu olhar e me deixou passar. É claro que ela vai acabar me levando - como faz com todos nós. É só uma questão de quando. E como. Aprendi muito com essas confrontações - especialmente sobre a beleza e a doce pungência da vida, sobre a preciosidade dos amigos e da família e sobre o poder transformador do amor. Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora do caráter, que a recomendaria a todos - não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco.”

“Gostaria de acreditar que, ao morrer, vou viver novamente, que a parte de mim que pensa, sente e recorda vai continuar. Mas, por mais que deseje acreditar nisso, e apesar das antigas tradições culturais difundidas em todo o mundo que afirmam haver vida após a morte, não sei de nada que me sugira que essa afirmação não passa de wishful thinking (pensamento tendencioso).”

“Quero envelhecer junto com minha esposa, Annie, a quem amo muito. Quero ver meus filhos mais moços crescerem e quero participar do desenvolvimento de seu caráter e intelecto. Quero conhecer os netos ainda não concebidos. Há problemas científicos cujas soluções desejo testemunhar - como a exploração de muitos dos mundos em nosso sistema solar e a busca de vida em outros lugares. Quero ver como vão se desenvolver tendências importantes na história humana, tanto promissoras como preocupantes: por exemplo, os perigos e a promessa de nossa tecnologia; a emancipação das mulheres; a crescente predominância política, econômica e tecnológica da China; o vôo interstelar.”

“Se houvesse vida após a morte, eu poderia, não importa quando morresse, satisfazer a maioria dessas profundas curiosidades e desejos. Mas, se a morte nada mais é do que um interminável sono sem sonhos, essa é uma esperança perdida. Talvez essa perspectiva tenha me dado uma pequena motivação extra para continuar vivo.”

“O mundo é tão refinado, com tanto amor e profundidade moral, que não há razão para nos enganarmos com histórias bonitas, para as quais não há muitas evidências. A meu ver, em nossa vulnerabilidade é muito melhor encarar a morte de frente e agradecer todos os dias pela oportunidade breve, mas magnífica que a vida nos concede.”

“Cinco mil pessoas oraram por mim numa cerimônia pascal na Catedral de St. John the Divine, na cidade de Nova York, a maior igreja da cristandade. Um sacerdote hindu relatou uma grande vigília de orações realizada para mim nas margens do Ganges. O imã da América do Norte me falou de suas orações para a minha recuperação. Muitos cristãos e judeus me escreveram para me falar de suas preces. Embora eu não ache que, se há um deus, o seu plano para mim será alterado por orações, sou mais grato do que posso dizer com palavras àqueles - inclusive a tantos que jamais conheci - que torceram por mim durante a minha enfermidade.”

Cético por natureza, nem no leito de morte, Sagan deu sinais de crença no sobrenatural. Ann Druyan, sua esposa falando à revista Newsweek disse: “Não houve conversão no leito de morte. Nenhum apelo a Deus, nenhuma esperança sobre uma vida pós�morte, nenhuma pretensão que ele e eu, que fomos inseparáveis por vinte anos, não estávamos dizendo adeus para sempre”. Quando lhe foi perguntado: “Ele não queria acreditar?”, Ann Druyan respondeu enfaticamente: “Carl nunca quis acreditar. Ele quis saber”.

Algumas frases de Carl Sagan:

“A ausência da evidência não significa a evidência da ausência.”

“Alegações extraordinárias exigem provas extraordinárias.”

“O primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude foi a duvida.”

“A ciência não é apenas compatível com a espiritualidade; ela é uma profunda fonte de espiritualidade.”

“O método da Ciência, por mais enfadonho e ranzinza que pareça, é muito mais importante do que as descobertas dela.”

“A ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. Mas é o melhor que temos.”

“Há algo na psique humana que se recusa a acreditar que somos mortais e que, é compreensível, não se deixa abater pela falta de provas na vida após a morte.”

“Pense bem. Quando estamos com fome, procuramos os alimentos produzidos graças à ciência e à tecnologia agrícola. Quando estamos doentes, quase sempre recorremos aos tratamentos propiciados pela medicina alopática. Quando vemos televisão, escutamos rádio ou lemos uma entrevista, estamos fazendo uso da ciência. Ocorre que as pseudociências fazem apelos às benesses e às promessas que a ciência não pode sustentar. Elas jogam com a ansiedade e o medo do moderno.”

“Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar.”

12 de março de 2010

O bem é a ausência do mal

“O mal é a ausência do bem” é uma resposta clássica ao Problema do Mal, mais conhecidamente defendida por São Tomás de Aquino. Essencialmente, esta resposta é uma tentativa de seguir o caminho da resposta de que “tudo é bom” sem perder a coerência com a teologia cristã. A “ausência do bem“ tenta fazer isso dizendo que o mal não é uma “coisa”, é a falta de uma coisa – em outras palavras, é simplesmente a ausência do bem, no mesmo sentido de que a escuridão é meramente a ausência de luz. O objetivo é fazer do mal algo a que se possa fazer referência sem torná-lo algo cuja existência deva ser considerada casualmente.

Sem qualquer dificuldade, podemos demonstrar que tal resposta é um jogo de palavras vazio, e que, portanto, não soluciona coisa alguma. Primeiramente, chamar o mal de “ausência do bem” ou escuridão de “ausência de luz” não faz com que tais coisas deixem de existir, pois aqui estamos lidando com conceitos subjetivos, não objetivos. Talvez alguns exemplos tornem tal idéia mais nítida.

“A tristeza não existe; é somente a ausência de felicidade”.
“O amor não existe; é somente a ausência de ódio”.
“O frio não existe; é somente a ausência de calor”.
“A paz não existe; é somente a ausência de conflitos”.
“A pobreza não existe; é somente a ausência de riqueza”.

Isso torna óbvio quão facilmente podemos reformular a maneira como as palavras são apresentadas de modo a colocar a existência de uma coisa como subordinada à de outra. Poderíamos também dizer que o bem é a ausência do mal. Essa afirmação é igualmente bem justificada, pois se baseia na mesma lógica, e certamente não temos motivos para julgar que a primeira é mais coerente – senão pela nossa notável simpatia pela bondade.


FONTE:
O Problema do Mal (de Mike Hardie)
Ateísmo & Liberdade (de André Díspore Cancion)