3 de dezembro de 2012

A música de minha vida


Religião: religare e relegere. Ouvir concentrada mente a Partita II de Bach constitui, para mim, a experiência religiosa por excelência: o resta belecimento do vínculo sagrado com a totalidade do universo (religare) e o retorno a uma síntese primeira, anterior à cisão da autoconsciência e à dor de formas repartidas (relegere). Acima de tudo que conheço, re verencio ou possa conceber, a pureza e a perfeição austera desses sons traduzem, aos meus ouvidos, a idéia de absoluto.
O que pode qualquer metafísica ou religião instituída, calcada no miasma de uma doutrina, diante da verdade infinita - a espiritualidade em estado puro - que emana da música de Bach? Se o divino e o transcendente se rendem à força criadora do espírito humano, então é precisamente aqui, na geometria sublime dessa arquitetura para além do tempo e do espaço, que encontro a sua mais bela e definiti­va expressão. Templo sonoro do meu panteísmo.
Ouvir bem - estar minimamente à altura do que se ouve - é trabalho duro, normalmente precedido de um pequeno ritual. Silêncio, isolamento e concentração são essenciais: olhos cerrados, respiração apaziguada, corpo na horizontal. O valor da audição depende de uma ascese espiritual que, no cotidiano da metrópole, nem sempre pode ser des­frutada. A dádiva, muitas vezes, reside apenas em lembrai que esse espaço-tempo do sagrado existe, ou seja, que ele está lá, ao nosso alcance, como um elixir que nos permite escapar do circuito profano das miudezas do mundo - a cidade em que vozes e buzinas se confundem - para in­gressar por inteiro no universo paralelo da espiritualidade atemporal de Bach.
A vida oprime, o som liberta. Conside­ro impossível ouvir devidamente a Partita II na companhia de quem quer que seja.
O meu primeiro contato com a Partita II se deu quando eu tinha 16 anos. Obra de um acaso feliz. Um amigo de escola, com quem costumava conversar longamente sobre música e literatura, apareceu um dia dizendo que ouvira a Ciaccona, num disco de uma coleção seriada sobre a história da música clássica que estava sendo vendida na época em bancas de jornal.
Ocorre que ele discorreu com tanto entusiasmo e paixão sobre a obra que tive imediatamente curiosidade de conhecê-la. Comprei um exemplar do fascículo poucos dias depois da nossa conversa e colo­quei o disco na pequena vitrola que tinha em meu quarto. Por maior que fosse a minha expectativa (e confesso que cheguei a suspeitar que o meu amigo exagerava em sua calorosíssima apreciação), como imaginar o que estava prestes a encontrar?
Naquela altura, eu já conhecia alguma coisa de mú­sica erudita, especialmente na tradição romântica alemã, mas logo me dei conta de que aquilo pertencia a uma outra ordem de expressão e espiritualidade. A experiência foi ar­rebatadora. Como era possível que um único instrumento apenas - as quatro cordas de um violino - pudesse defla­grar uma arquitetura polifônica de tamanha beleza e com­plexidade? Que misterioso dom de transporte era aquele, capaz de nos conduzir a um mundo psicoacústico de for­mas puras e perfeitas - um mundo sem máculas e arestas e diante do qual aquele em que nos é dado existir não pas­sa de arremedo e exílio? Tive a certeza instantânea de que aqueles sons me acompanharam pelo resto da vida.
A passagem do tempo confirmou plenamente aquela intuição juvenil. Nada me faz sentir de maneira tão clara os limites de todas as demais formas conhecidas de expressão artística - poesia, artes plásticas, teatro, arquitetura, roman­ce, cinema etc. - quanto uma audição ideal da Partita II, coroada pelo monumental quinto movimento (Ciaccona). A música permite um grau de absorção e imersão a quem a ela se entrega que nenhuma outra arte é capaz de proporcionar. Nela apenas se pode abstrair de tudo o que existe e mergu­lhar no universo paralelo da completa transcendência.
A alma embalada pelo som quando sonha, desligada do corpo e dos demais sentidos, refaz o mundo a seu modo - é criadora e criação de si mesma. Para onde vai o tem­po enquanto estamos mergulhados, em estado de absorta concentração, na música das esferas de Bach? Os pouco mais de 25 minutos da Partita II bastam para escancarar o que há de errado com a idéia de se medir e domesticar o tempo, submetendo-o à contagem uniforme e mecânica dos relógios - o intervalo finito demarcado por suas notas de abertura e encerramento contém em si a eternidade.
■EDUARDO GIANNETTI é sociólogo e economista for­mado pela USP e Ph.D, em economia pela Universidade de Cambridge. É professor do IBMEC São Paulo e autor de, entre outros livros, O valor do amanhã (Companhia das Letras, 2005). Temporada Brasil 2006
J.S. BACH – Sonatas e partitas (partita II e ré menor – BMW 1004), por Sándor Végh
FONTE: REVISTA DIAPASON – nr. 1/ 2006

22 de novembro de 2012

Metafísica dos vasos comunicantes

ORIGEM: Medo das forças “misteriosas” da natureza (trovões, raios, enchentes, vulcões, maremotos, terremotos, vendavais) + Medo da fome, de animais, de doenças, do sofrimento + Medo da morte, do desconhecido.
® Falta de interpretação dos fenômenos naturais. Movimentação do sol e da lua. Estrelas cadentes. Imensidão do Universo.
® num mundo cheio de mistérios, o homem primitivo imaginou um ser invisível, poderoso, como o criador dos artefatos existentes no mundo e autor dos fenômenos da natureza. A esse ser imaginário chamou de deus.
SACRALIZAÇÃO: Ruptura entre o natural e o sobrenatural, introduzindo no sobrenatural uma força ou potência para realizar aquilo que os humanos julgavam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades humanas. Proporciona superioridade e poderio de alguns sobre outros, sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos. Opera o encantamento do mundo, habitado por forças maravilhosas e poderes admiráveis que agem magicamente à distância, enlaçando entes diferentes com laços secretos e eficazes. Pode suscitar devoção e amor, repulsa e ódio. Esses sentimentos suscitam um outro: o respeito feito de temor. Nasce, aqui, o sentimento religioso e a experiência da religião.
® Natural x Sobrenatural; Material x Espiritual = cria diferença ® oposição, antagonismo (para dominar).
® Sobrenatural (crença → desconhecimento → ignorância) = potência (força → poder → pré-figura deus!).
® Espiritual (crença → desconhecimento → ignorância) = incognoscível (inexplicável → mistério → temor).
RELIGIÃO: Códigos morais, de bom comportamento, que aspiram à vida eterna. A Religião pressupõe que, além do sentimento da diferença entre natural e sobrenatural, haja o sentimento da separação entre os humanos e o sagrado, mesmo que este habite os humanos e a Natureza.
® Nasceu da superstição (crença infundada, ignorância), passando a servir a tirania (opressão).
® É nefasta porque mantém os homens em estado de ignorância das verdadeiras causas de todas as coisas, da origem humana, do poder político e das leis.
LEI DIVINA: Os deuses são poderes misteriosos e vontades. Misteriosos, porque suas decisões são imprevisíveis e, muitas vezes, incompreensíveis para os critérios humanos de avaliação. Vontades, porque o que acontece no mundo manifesta um querer pessoal, supremo e inquestionável. A religião, ao estabelecer o laço entre o humano e o divino, procura um caminho pelo qual a vontade dos deuses seja benéfica e propícia aos seus adoradores. A vontade divina pode tornar-se parcialmente conhecida dos humanos sob a forma de leis, isto é, decretos, mandamentos, ordenamentos, comandos emanados da divindade.
® As leis são instuituidas pela vontade de Deus, reveladas a alguns que têm o direito divino, com poderes para dominar e comandar.
MORTALIDADE: Toda religião explica não só a origem da ordem do mundo natural, mas também do mundo humano. No caso dos humanos, a religião precisa explicar por que são mortais. O mistério da morte é sempre explicado como expiação de uma culpa original, cometida contra os deuses. No princípio, os homens eram imortais e viviam na companhia dos deuses; a seguir, uma transgressão imperdoável tem lugar e, com ela, a grande punição: a mortalidade.
IMORTALIDADE: Algumas religiões afirmam que o corpo humano possui um duplo, feito de outra matéria, que permanecerá após a morte, usando outros seres para relacionar-se com os vivos. Certas religiões acreditam que o corpo é habitado por uma entidade – espírito, alma, sombra imaterial, sopro -, que será imortal se os decretos divinos e os rituais tiverem sido respeitados pelo fiel. Por acreditarem firmemente numa outra vida – que pode ser imediata, após a morte do corpo, ou pode exigir reencarnações purificadoras até alçar-se à imortalidade -, as religiões possuem ritos funerários, encarregados de preparar e garantir a entrada do morto na outra vida.
Ø    RELIGIÕES = Códigos morais, de bom comportamento + vida eterna.
Ø    UNIVERSO = Grande oceano com seus vasos comunicantes (a Natureza, o Tudo).
Ø    ENTE = Consciência individual.
Ø    SER = Consciência coletiva.
VASOS COMUNICANTES: Todos os atos que praticamos, através de um sistema de vasos comunicantes, acabam repercutindo no mundo físico, no planeta e nos demais seres vivos. O Universo (o Tudo) é como se fosse um Grande Oceano, interligado com os Entes, por mares, lagos, rios e arroios.  
® Os Entes (vasos), depois de extinguir-se o prazo de validade, são despejados na margem do oceano onde evoluíram.
® O líquido/fluído (consciência individual) ao ser despejado na margem, interage imediatamente com o Grande Oceano (o Universo), através de “vasos comunicantes”.
® Novos Entes (vasos) são enchidos com o líquido/fluído da margem do Grande Oceano de seus ancestrais, começando o prazo de validade desses.
® Os Entes são distintos, pois embora pertençam ao Grande Oceano (ao Tudo, ao Ser), guardam algumas características dos lugares onde foram enchidos.
® O Grande Oceano (a Natureza) é reciclado a todo o instante com o despejo ininterrupto de líquidos/fluídos (consciência singular) de Entes (vasos) que vão se extinguindo.
CONSCIENTE COLETIVO: O consciente coletivo (o Ser) é constituído por um patrimônio coletivo da espécie humana (Entes). Esse conteúdo coletivo é essencialmente o mesmo em qualquer lugar e não varia de pessoa para pessoa.
® Nesse consciente coletivo, os temas importantes para a humanidade vão evoluindo até o momento em que eles são absorvidos no imaginário popular em forma de lendas e superstições e em manifestações artísticas.
® Os Entes (vasos) carregam armazenadas no inconsciente coletivo, informações de um enorme banco de dados (o Ser, o Tudo), onde ficam todas as impressões da humanidade, desde o início dos tempos.
® Os arquétipos presentes no inconsciente coletivo são universais e idênticos em todos os indivíduos e manifestam-se simbolicamente em religiões, mitos, contos de fadas e fantasias.
® Entre os principais arquétipos estão os conceitos de nascimento, morte, sol, lua, fogo, poder e mãe.
® Nos sonhos, visões, êxtases e devaneios espirituais (vidas passadas, EQMs, etc.), podemos ter acesso, através do cérebro, aos cantos mais profundos desse banco de dados (do Ser, do Tudo).
GENES: Os genes são os responsáveis pela capacidade, que todos os seres vivos (Entes) possuem, de transmitir informação (o fluído Universal, o Consciente Coletivo) aos descendentes. Levamos nos genes, as memórias de nossos ancestrais, seus instintos, a personalidade, a individualidade consciente de todos os que participaram na formação do nosso Ente.
® O conhecimento pretérito, apenas parece ser de “vidas passadas”, mas em verdade decorre da memória incorruptível dos genes (do Ser), constituída por bytes, bytes e mais bytes de informação digital pura.
® As explicações místicas, são simplesmente resultantes de arquétipos oriundos de experiências ancestrais, que se arquivaram nas delicadas estruturas nervosas e posteriormente são transmitidas aos descendentes através de genes ao longo de gerações.
® A crença na imortalidade da alma, comum a quase todas as religiões, não passa da percepção, em nível consciente, da imortalidade do Ser (o Universo, o Tudo). São o resultado das complexas reações físico‑químicas operadas no cérebro, em resposta aos estímulos externos e internos captados pelos sentidos ou outros meios, e levados àquele órgão via rede nervosa de todo o organismo.
® Herdamos as predisposições de temer serpentes e a escuridão porque nossos ancestrais experimentaram tais medos ao longo de um sem-número de gerações. Estes medos ficaram-lhes gravados no cérebro. Os conteúdos do inconsciente coletivo estimulam um padrão pré-formado de comportamento pessoal que o indivíduo seguirá desde o dia do nascimento.
ALMA OU ESPÍRITO: Não existe nenhuma alma ou espírito individual diferente do Ente. A alma ou espírito do Ente é apenas a inteligência agregada das células (dos genes). Não existe alma ou espírito individual além da inteligência animal, além do cérebro. É o cérebro que nos mantém vivos. Não há nada além disso. Toda essa conversa de uma existência (consciência individual) para nós, além do túmulo, está errada. Nasce de nosso apego à vida - nosso desejo continuar vivendo - nosso medo de chegar a um fim como indivíduos.
® Corpo e alma = Uno (uma coisa só). Unidade imanente ao Ente. Permanência do fim. Que existe sempre e é inseparável dele. Que não pode ser encontrada do lado de fora.
® Deus (o Ser, o Tudo, a Natureza, o Universo) é imantente à Natureza e somente pode ser conhecido pela razão.
ENERGIA: Energia é igual a matéria, bastando multiplicar pelo quadrado da velocidade da luz. É nisto que consiste o princípio da fórmula E=m.c². Tudo é energia, mesmo que não pareça, pois matéria é energia com “massa em repouso”, ou seja, a massa do objeto quando sua velocidade é nula. Qualquer atividade que resulte numa mudança de um estado inicial de um objeto requer energia.
MATÉRIA: Matéria e energia são a mesma coisa, só que apresentadas de forma diferente. Massa é uma espécie de âncora da matéria. Sem massa, a matéria não poderia se organizar estruturas como átomos, moléculas, células e seres vivos. Sem massa não existiria repouso. Tudo ao nosso redor é constituído de matéria. Dos mesmos átomos, dos mesmos elementos, da mesma matéria que compõe o restante do Universo. Todas as estrelas, um dia, foram massas enormes de hidrogênio puro, comprimido, quentíssimo, girando pelo espaço. Toda a matéria que conhecemos por aqui veio delas. Tudo veio das estrelas.
TUDO ACABA! Um dia a Terra desaparecerá. Apaga-se o sol, o sistema solar acaba e o Universo nem sequer se dará conta de que existimos. Ainda assim, em algum canto do Universo, no Grande Oceano, um mar, um lago, um rio ou um arroio, continuará existindo...
Ø    UNIVERSO: O Tudo (o Ser) ® Um Grande Oceano (o Consciente Coletivo) que interage com os Entes através de vasos comunicantes (o Grande Oceano). Não foi criado, sempre existiu. A ordem vem do “design” da regularidade natural, não havendo qualquer necessidade de uma explicação mais ampla.
Ø    O ENTE: Consciência individual (o Consciente Coletivo singular) ® aparente, sensível e mortal.
Ø    O SER: Consciência coletiva (o Universo, a Natureza, o Tudo) ® amórfico, insensível e imortal.
Ø    RELIGIÕES: Códigos morais, de bom comportamento, que aspiram à vida eterna da consciência individual.
Ø    DEUS: Sacralização do Ser ® Incognoscível (inexplicável ® mistério ® crença). Um ser antropomórfico (pessoa), com pensamentos e emoções.
Ø    A LEI: O Universo (a Natureza, o Tudo) é regido por uma “Lei” impessoal, imanente, perfeitamente racional e acessível. A Lei funciona automaticamente. Quem se harmoniza com a Lei, goza; quem se opõe, sofre. A Lei é essencialmente neutra. A Lei é totalmente indiferente à dor, ao sofrimento, à maldade, à bondade, à beleza, à feiúra ou a qualquer outra coisa que possamos valorizar. 

30 de abril de 2012

Um universo a partir do nada

O cosmologista americano Lawrence Krauss Krauss, de 57 anos, é mundialmente conhecido por seu trabalho teórico, por livros como A física de Jornada nas Estrelas e por seus programas no Discovery Channel. Em seu novo livro, A universe from nothing (Um universo a partir do nada, ainda inédito no Brasil), ele parte das leis da física para dizer que os mistérios em torno da origem do Universo são uma mistificação. Nesta entrevista, ele diz que a ciência finalmente é capaz de explicar como o Universo surgiu. “Os religiosos afirmam saber que Deus criou o Universo. Isso é preguiça intelectual”, afirma. 
Quando questionado se a crença em Deus tornou-se obsoleta com o avanço da ciência, o cientista respondeu,”O avanço da física, da química e da biologia nos fez desvendar o funcionamento da matéria e dos fenômenos biológicos. Ao mesmo tempo, esse avanço foi reduzindo o alcance do termo milagre até deixá-lo restrito ao que teria existido antes do big bang, a explosão primordial que criou o Universo há 13,7 bilhões de anos. Agora, o milagre divino perdeu esse último bastião. A cosmologia do século XX chegou ao ponto em que podemos falar sobre a criação e a evolução de todo o Universo, um tema que não é mais do domínio exclusivo da teologia.”.
Krauss foi rígido ao criticar os que acreditam em Deus, “Os religiosos que afirmam que conhecem as verdades fundamentais… É inacreditável. Eles afirmam saber que Deus criou o Universo. Isso é preguiça intelectual. A ciência lida muito bem com a existência de mistérios à espera de ser revelados. Sempre haverá perguntas sem respostas e mistérios a descobrir. Os milagres se tornaram obsoletos.”.
Comentando sobre seu livro, o cientista levanta a hipótese do Universo ter surgido a partir do nada e que há a possibilidade de haver mais universos existentes, o que ele chamou de “multiuniverso”, e sobre as condições futuras do universo citou ironicamente, “Prefiro viver hum universo onde a vida é breve e preciosa a noutro onde o sentido da vida nos é ditado por um Saddam Hussein dos céus!”
Traçando um paralelo entre a ciência e a religião, o físico argumentou, “Ninguém precisa ser um especialista em cosmologia para apreciar o panorama do surgimento e da evolução do Universo, da mesma forma como não é preciso ser músico para apreciar a música de Bach (que, aliás, era muito complexa!). Sim, as versões da ciência são mais complicadas que as da religião, mas também são muito mais interessantes. O Universo tem uma imaginação muito maior que a nossa e seus fenômenos que observamos, como a explosão de supernovas ou a criação de buracos-negros, são muito mais fascinantes do que os contos de fadas criados por gente que viveu há milhares de anos, muito antes de descobrirmos que a Terra órbita o Sol e que não estamos no centro do Universo.”.
Ao final da entrevista, Lawrence Kraus disse não se considerar um ateu, mas um antiteísta, “Não posso provar sem sombra de dúvidas que Deus não existe, mas posso afirmar que preferiria muito mais viver num universo em que ele não exista.”, e ao ser questionado se Deus se tornou irrelevante para a sociedade, respondeu, “Porque eu penso que Deus é uma invenção da humanidade, minha resposta é não. Se existisse um Deus, ele certamente teria deixado de se preocupar com os desígnios do cosmos logo depois de criá-lo, há 13,7 bilhões de anos, pois tudo o que aconteceu desde então pode ser explicado pela ciência. Não, Deus talvez não seja irrelevante. Ele é redundante.”.

ÉPOCA – O que aprendemos sobre a origem do Universo, graças ao avanço da ciência, tornou obsoleta a crença em Deus?
LAWRENCE KRAUSS – Até o século XVI, a religião detinha o monopólio da explicação dos mistérios da criação. A responsabilidade pela criação de tudo era divina, e ai de quem duvidasse! Aquele monopólio da fé começou a ser solapado a partir da obra de Copérnico (Nicolau Copérnico, astrônomo polonês do século XV) e a de Galileu (Galileu Galilei, astrônomo italiano do século XVI), que substituíram o milagre metafísico pela realidade física. Quando, há 300 anos, Newton (Isaac Newton, físico e matemático inglês do século XVII) explicou que o movimento dos planetas podia ser compreendido por meio de leis físicas bem simples que não requeriam a intromissão dos anjos, tudo mudou. O avanço da física, da química e da biologia nos fez desvendar o funcionamento da matéria e dos fenômenos biológicos. Ao mesmo tempo, esse avanço foi reduzindo o alcance do termo milagre até deixá-lo restrito ao que teria existido antes do big bang, a explosão primordial que criou o Universo há 13,7 bilhões de anos. Agora, o milagre divino perdeu esse último bastião. A cosmologia do século XX chegou ao ponto em que podemos falar sobre a criação e a evolução de todo o Universo, um tema que não é mais do domínio exclusivo da teologia.
ÉPOCA – Os religiosos sempre disseram que há algumas questões fundamentais para as quais nenhuma teoria científica jamais encontrou respostas. Ainda não é o caso?
KRAUSS – Não é nem nunca foi o caso. A religião alegava ter as respostas para as perguntas mais básicas do Universo e da vida antes mesmo de essas perguntas terem sido feitas. A religião também afirma que suas respostas são verdades inquestionáveis. Ora, nós, cientistas, somos movidos pela dúvida. O que move nossa curiosidade é a busca de respostas para os mistérios da natureza. Sabemos que não temos todas as respostas e que as respostas que temos não são verdades definitivas. Que questões ficariam sem resposta? Só o tempo e o esforço concentrado de pesquisa dirão. Por isso, não podemos nos deixar satisfazer com as respostas científicas já reveladas nem descansar sobre os louros conquistados, relegando a busca de novas respostas que tenham o poder de revelar uma visão mais profunda da natureza.
ÉPOCA – Os religiosos afirmam que a humanidade jamais descobrirá as verdades mais fundamentais, como a origem do Universo e como surgiu a vida.
KRAUSS – Jamais saberemos se essas são de fato verdades inatingíveis se não tentarmos elucidá-las. Os religiosos afirmam que conhecem as verdades fundamentais... É inacreditável. Eles afirmam saber que Deus criou o Universo. Isso é preguiça intelectual. A ciência lida muito bem com a existência de mistérios à espera de ser revelados. Sempre haverá perguntas sem resposta e mistérios a descobrir. Os milagres se tornaram obsoletos.
ÉPOCA – A ciência ensina que o Universo começou com o big bang e que antes dele não havia nada.
KRAUSS – A ciência nos ensina que houve um big bang, mas não diz o que havia antes. Em meu livro, explico por que, com base nos conhecimentos de ponta atuais, é plausível imaginar a hipótese de que o Universo tenha surgido a partir do nada. E, a partir do nada, o Universo teria evoluído por meio de processos naturais que levaram à formação de átomos, moléculas, estrelas, planetas, galáxias e vida.
ÉPOCA – Como o Universo surgiu do nada?
KRAUSS – Nosso Universo tem todas as características de um universo criado a partir do nada. Uma das descobertas mais notáveis da física moderna é que o vácuo espacial não é vazio. O vácuo pode ser inteiramente vazio de matéria, mas não de energia. Se pudéssemos observar o vácuo em dimensões infinitamente pequenas e lapsos de tempo infinitamente curtos, muito menores e mais curtos do que a tecnologia atual é capaz de fazer, veríamos que o vácuo é tudo, menos estático, e que nele partículas pipocam a partir do nada e desaparecem instantaneamente. Em determinadas condições, entretanto, essas partículas virtuais não precisariam necessariamente desaparecer. Elas poderiam não só continuar existindo, como se multiplicar, dando origem a um big bang e a um novo universo em expansão. A evidência de que isso pode ter sido realmente o caso da origem de nosso Universo é um feito notável.
ÉPOCA – Aconteceu apenas uma vez? O pipocar de partículas não poderia ter criado outros universos?
KRAUSS – Sim, tudo leva a crer que é o caso, embora não tenhamos como provar. Podemos viver num “multiverso”. Nosso Universo pode ser apenas um entre infinitos outros de um “multiverso que é eterno e infinito”. Prefiro viver num universo onde a vida é breve e preciosa a noutro onde o sentido da vida nos é ditado por um Saddam Hussein dos céus!
ÉPOCA – Os religiosos afirmam que Deus é anterior ao Universo e existiria antes do big bang.
KRAUSS – O principal problema dessa noção da criação é que ela requer a existência de alguma coisa que anteceda o Universo, de modo a poder criá-lo. É aí que quase sempre entra a noção de Deus, alguma entidade que existiria em separado do espaço, do tempo e da realidade física. Para mim, Deus não passa de uma solução semântica fácil para uma questão tão profunda como a criação. Os religiosos nunca tocam na questão da criação de Deus, pois essa é ainda mais confusa do que a solução religiosa que deram para a criação do Universo. Para os religiosos, Deus simplesmente existe, não importando quantas e quão fortes sejam as evidências que a ciência fornece para indicar a extrema improbabilidade de tal coisa ser verdade.
ÉPOCA – O Universo se expandirá para sempre? Num futuro remoto, as galáxias desaparecerão, as estrelas evaporarão e o cosmos voltará ao nada? Saber disso não torna a vida sem sentido?
KRAUSS – A vida não precisa ter nenhum sentido, a não ser aquele que damos a ela. Por que ficarmos deprimidos? Para mim, essa é uma imagem revigorante. Justamente porque a vida é efêmera, todos nós deveríamos tirar o máximo proveito do breve momento que desfrutamos sob o sol. Deveríamos aproveitar ao máximo o fato de evoluirmos com uma consciência que nos possibilita apreciar a beleza do cosmos, ao mesmo tempo que buscamos melhorar a vida na Terra. Prefiro viver num universo onde a vida é breve e preciosa a noutro onde o sentido da vida nos é ditado por um Saddam Hussein dos céus!
ÉPOCA – O senhor diz que vivemos num momento especial da história do Universo. Como assim?
KRAUSS – O Universo tem 13,7 bilhões de anos. Ele é muito antigo. Quando olhamos o infinito futuro a nossa frente, o Universo ainda é muito jovem. Todas as evidências de que um dia há 13,7 bilhões de anos aconteceu um big bang ainda podem ser vistas por meio de nossos observatórios astronômicos. É o que acontece quando os astrônomos verificam que todas as galáxias estão se afastando cada vez mais rápido umas das outras. Num futuro distante, as galáxias estarão tão longe de nossa Via Láctea que não poderão mais ser observadas. Elas desaparecerão no breu cósmico. Para todos os efeitos, será como se jamais tivessem existido. Uma civilização que viva num planeta da Via Láctea naquele futuro jamais saberá como o Universo surgiu.
ÉPOCA – Para entender e aceitar a origem do Universo como descrita pela ciência, é preciso ter bom nível cultural e intelectual, pois não se trata de conceitos simples. A religião lida com conceitos que podem ser apreendidos por qualquer criança.
KRAUSS – Ninguém precisa ser um especialista em cosmologia para apreciar o panorama do surgimento e da evolução do Universo, da mesma forma como não é preciso ser músico para apreciar a música de Bach (que, aliás, era muito complexa!). Sim, as versões da ciência são mais complicadas que as da religião, mas também são muito mais interessantes. O Universo tem uma imaginação muito maior que a nossa e seus fenômenos que observamos, como a explosão de supernovas ou a criação de buracos-negros, são muito mais fascinantes do que os contos de fadas criados por gente que viveu há milhares de anos, muito antes de descobrirmos que a Terra órbita o Sol e que não estamos no centro do Universo.
ÉPOCA – Nos últimos anos, muitos cientistas e intelectuais começaram a defender a bandeira do ateísmo. É o caso de dois célebres ingleses, o biólogo Richard Dawkins e o físico Stephen Hawking. O senhor pertence a esse movimento?
KRAUSS – Acho que sim. As pessoas com frequência me colocam ao lado de Dawkins e Hawking, o que me enche de orgulho. Mas prefiro pensar em mim não como um ateu, e sim como um antiteísta. Não posso provar sem sombra de dúvidas que Deus não existe, mas posso afirmar que preferiria muito mais viver num universo em que ele não exista.
ÉPOCA – Deus se tornou irrelevante para a humanidade?
KRAUSS – Porque eu penso que Deus é uma invenção da humanidade, minha resposta é não. Se existisse um Deus, ele certamente teria deixado de se preocupar com os desígnios do cosmos logo depois de criá-lo, há 13,7 bilhões de anos, pois tudo o que aconteceu desde então pode ser explicado pela ciência. Não, Deus talvez não seja irrelevante. Ele é redundante. 

27 de abril de 2012

Freud além da alma

Texto introdutório do filme: “Freud além da alma”: “Desde a Antiguidade, houve três grandes mudanças na ideia do homem sobre si mesmo. Três grandes golpes afetaram nossa vaidade (ego).
1) Antes de Copérnico, acreditávamos ser o centro do Universo, que todos os corpos celestes giravam ao nosso redor, mas o grande astrônomo derrubou este conceito, e fomos forçados a admitir que nosso planeta é apenas um dentre os muitos que giram ao redor do sol, e que há outros sistemas além do nosso e incontáveis mundos.
2) Antes de Charles Darwin, o homem acreditava ser uma espécie única, completamente separada do Reino Animal. Mas o grande biólogo nos fez ver que o nosso organismo físico – por mais que pareça complexo, devo acrescentar – é o produto de um vasto processo evolutivo cujas leis em nada diferem daquelas dos animais.
3) Antes de Sigmund Freud, o homem acreditava que o que dizia e fazia era um produto de sua vontade consciente. Mas o grande psicólogo demonstrou a existência de outra parte de nossa mente que funciona no mais obscuro segredo e que pode até comandar nossas vidas. Esta é a história da entrada de Freud numa região tão escura quanto o próprio inferno, o inconsciente humano e de como ele o iluminou.”

5 de dezembro de 2011

A busca da felicidade

Felicidade é um truque. Um truque da natureza concebido ao longo de milhões de anos com uma só finalidade: enganar você. A lógica é a seguinte: quando fazemos algo que aumenta nossas chances de sobreviver ou de procriar, nos sentimos muito bem. Tão bem que vamos querer repetir a experiência muitas e muitas vezes. E essa nossa perseguição incessante de coisas que nos deixem felizes acaba aumentando as chances de transmitirmos nossos genes. “As leis que governam a felicidade não foram desenhadas para nosso bem-estar psicológico, mas para aumentar as chances de sobrevivência dos nossos genes a longo prazo”, escreveu o escritor e psicólogo americano Robert Wright, num artigo para a revista americana Time.

A busca da felicidade é o combustível que move a humanidade – é ela que nos força a estudar, trabalhar, ter fé, construir casas, realizar coisas, juntar dinheiro, gastar dinheiro, fazer amigos, brigar, casar, separar, ter filhos e depois protegê-los. Ela nos convence de que cada uma dessas conquistas é a coisa mais importante do mundo e nos dá disposição para lutar por elas. Mas tudo isso é ilusão. A cada vitória surge uma nova necessidade. Felicidade é uma cenoura pendurada numa vara de pescar amarrada no nosso corpo. Às vezes, com muito esforço, conseguimos dar uma mordidinha. Mas a cenoura continua lá adiante, apetitosa, nos empurrando para a frente. Felicidade é um truque.
E temos levado esse truque muito a sério. Vivemos uma época em que ser feliz é uma obrigação – as pessoas tristes são indesejadas, vistas como fracassadas completas. A doença do momento é a depressão. “A depressão é o mal de uma sociedade que decidiu ser feliz a todo preço”, afirma o escritor francês Pascal Bruckner, autor do livro A Euforia Perpétua. Muitos de nós estão fazendo força demais para demonstrar felicidade aos outros – e sofrendo por dentro por causa disso. Felicidade está virando um peso: uma fonte terrível de ansiedade.
Esse assunto sempre foi desprezado pelos cientistas. Mas, na última década, um número cada vez maior deles, alguns influenciados pelas idéias de religiosos e filósofos, tem se esforçado para decifrar os segredos da felicidade. A idéia é finalmente desmascarar esse truque da natureza. Entender o que nos torna mais ou menos felizes e qual é a forma ideal de lidar com a ansiedade que essa busca infinita causa. Veja nas próximas páginas o que eles já descobriram.
TRÊS CAMINHOS
Um dos motivos pelos quais a felicidade é tão difícil de alcançar é que nem sabemos bem o que ela é (veja algumas tentativas de defini-la no quadro da página 52). Daí a importância das pesquisas do psicólogo americano Martin Seligman, da Universidade da Pensilvânia. Seligman concluiu que felicidade é na verdade a soma de três coisas diferentes: prazer, engajamento e significado.
Prazer você sabe o que é. Trata-se daquela sensação que costuma tomar nossos corpos quando dançamos uma música boa, ouvimos uma piada engraçada, conversamos com um bom amigo, fazemos sexo ou comemos chocolate. Um jeito fácil de reconhecer se alguém está tendo prazer é procurar em seu rosto por um sorriso e por olhos brilhantes. Já engajamento é a profundidade de envolvimento entre a pessoa e sua vida. Um sujeito engajado é aquele que está absorvido pelo que faz, que participa ativamente da vida. E, finalmente, significado é a sensação de que nossa vida faz parte de algo maior.
A vantagem de dividir a felicidade em três é que assim fica mais fácil definirmos nossos objetivos. “Buscar a felicidade” é uma meta meio vaga, fica difícil até de saber por onde começar. Mas, se você se conscientizar de que basta juntar essas três coisas – prazer, engajamento e significado – para a felicidade vir de brinde, a tarefa torna-se menos penosa. Seligman acha que um dos maiores erros das sociedades ocidentais contemporâneas é concentrar a busca da felicidade em apenas um dos três pilares, esquecendo os outros. E geralmente escolhemos justo o mais fraquinho deles: o prazer. “Engajamento e significado são muito mais importantes”, disse ele numa entrevista à Time. Como então alcançá-los? (Veja algumas dicas práticas para ser feliz, no quadro à direita.)
Comecemos pelo engajamento. Algumas pessoas são capazes de se engajar em tudo: entram de cabeça nos romances, doam-se ao trabalho, dão tudo de si a todo momento. Isso é raro e nem sempre é bom (inclusive porque gente engajada demais tende a negligenciar outros aspectos da vida, em especial o prazer). Ninguém precisa ir tão longe, mas o esforço de estar atento ao mundo, participando da vida, vale a pena.
Mihaly Csikszentmihalyi (pronuncie “txicsentmirrái”), pesquisador da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, estuda um fenômeno cerebral chamado “fluxo”, que ocorre quando o engajamento numa atividade torna-se tão intenso que dá aquela sensação boa de estar completamente absorto, a ponto de esquecer do mundo e perder a noção do tempo. Ou seja, é um estado de alegria quase perfeita. Esse fenômeno acontece com monges em estado de meditação, mas também em situações muito mais comuns, como ao tocar um instrumento, andar de bicicleta ou até mesmo ao consertar a estante da casa. Um outro pesquisador, o americano Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin, observou em laboratório que as pessoas em estado de fluxo ativam uma região do cérebro chamada córtex pré-frontal esquerdo, o que pode ter uma série de efeitos no organismo, inclusive um melhor funcionamento do sistema imunológico. Ao longo de um estudo realizado na Holanda, pessoas que entraram em fluxo tiveram seu risco de morte reduzido em 50%, por reagirem melhor a doenças.
E como se entra no tal fluxo? Csikszentmihalyi afirma que o segredo é buscar atividades nas quais se possa usar todo o seu talento. Tem de ser um desafio não muito fácil a ponto de ser entediante, nem tão difícil que se torne frustrante. Procurar experiências desse tipo é recompensador e traz níveis bem altos de felicidade. Claro que infelizmente nem todo mundo tem a sorte de encontrar desafios assim no trabalho. Nesse caso, um hobby pode ajudar na busca por engajamento e por momentos de fluxo – pode tanto ser uma atividade manual ou intelectual quanto um esporte.
Quanto ao terceiro pilar da felicidade, o significado, o jeito tradicional de conquistá-lo é via religião. Há milênios, a humanidade encontra alento na crença de que cada um de nós faz parte de uma ordem maior. Pesquisas mostram que as pessoas religiosas consideram-se, na média, mais felizes que as não-religiosas – elas também têm menos depressão, menos ansiedade e suicidam-se menos. A crença de que Deus está nos observando, nas palavras do psicólogo e estudioso da religião Michael McCullough, da Universidade de Miami, é uma espécie de “equivalente em grande escala do pensamento ‘se eu não conseguir pagar o aluguel, meu pai vai ajudar’”. Ou seja, é um conforto, uma garantia de que, no final, as injustiças serão corrigidas e nossos esforços, reconhecidos.
Mas a religião não é a única forma de dar significado à vida. Um truque eficaz para ficar mais feliz é fazer o bem para os outros – visitar um orfanato, ajudar uma criança a fazer a lição de casa, dar um presente útil. E isso não é conversa mole. Seligman mediu em laboratório os efeitos do altruísmo e percebeu que um único ato de bondade pode melhorar efetivamente os níveis de felicidade de uma pessoa por até dois meses. Cinco atos de bondade por semana turbinaram sensivelmente o astral dos cobaias – e, quando todos os cinco foram realizados num mesmo dia, o benefício foi ainda maior. Também se alcança significado construindo algo que pode sobreviver a você. O exemplo clássico é criar filhos. Uma outra dica é acreditar que sua vida é importante para alguma grande causa: a história, a ciência, a justiça social, a democracia, a liberdade, o progresso, a natureza. Ou seja, é útil crer em algo, mesmo que não seja em Deus.
Para terminar, há uma regra da qual especialista nenhum discorda: ter amigos (e nem precisam ser muitos) ajuda a ser feliz. Amigos contam pontos nos três critérios: trazem, ao mesmo tempo, prazer, engajamento e significado para nossas vidas.
SER INFELIZ É PRECISO
Ok, já temos a receita da felicidade. Basta juntar prazer, engajamento e significado e nossa vida se resolve para sempre? Ah, se fosse assim tão simples. A felicidade, como não cansam de repetir os poetas e os chatos, é breve. Ainda bem. Felicidade, por definição, é um estado no qual não temos vontade de mudar nada. Ou seja, se passássemos tempo demais assim, nossas vidas estacionariam. A busca da felicidade é o que nos empurra para a frente – se agarramos a cenoura, paramos de correr e a brincadeira perde completamente a graça. Portanto, um pouco de ansiedade, de insatisfação, é perfeitamente saudável.
“Felicidade é projetada para evaporar”, escreveu Robert Wright. E, segundo ele, há uma razão evolutiva para isso também: “se a alegria que vem após o sexo não acabasse nunca, então os animais copulariam apenas uma vez na vida”. Mora aí um dos grandes problemas atuais. Muita gente acredita que é possível viver uma existência só de altos, sem nenhum ponto baixo, sem tristeza, sem sofrimento. E alguns estão dispostos a conseguir isso sem esforço algum, só à custa de antidepressivos.
Isso é conversa de cientista, mas alguns religiosos, em especial os budistas, já afirmam algo parecido há muito tempo. Um de seus preceitos básicos é o de que “a vida é sofrimento”. Coisa chata, né? Talvez, mas ter consciência de que o sofrimento é inevitável pode ajudar a trazer felicidade, e certamente diminui a ansiedade. O conselho do dalai-lama é que, quando as coisas estiverem mal, em vez de se entregar à infelicidade ou tentar apenas minimizar os sintomas, você respire fundo e tente descobrir o porquê da situação.
Segundo ele, grande parte da dor é criada por nós mesmos, pela nossa inabilidade de lidar com a tristeza e pela sensação de que somos obrigados a ser sempre felizes. Ao encarar o sofrimento de frente e identificar as suas causas reais, você estará dando um passo na direção do autoconhecimento, o que vai lhe permitir entender quais seus objetivos na vida, quais seus valores. Para usar a terminologia de Seligman, esse autoconhecimento dará a você mais clareza sobre que tipo de atividades lhe traz prazer, engajamento e significado. Ou seja, são esses momentos ruins que criarão condições para você correr atrás da sua própria realização – individual, pessoal e intransferível.
CADA UM É CADA UM
É aí que está o pulo-do-gato. Não existe uma fórmula da felicidade que funcione com todo mundo – é justamente nisso que os livros de auto-ajuda costumam falhar. Cada pessoa é diferente e reage à vida de modo diferente. Foi essa a conclusão do estudo realizado em 1996 pelo pesquisador David Lykken, da Universidade de Minnesota. Ele comparou dados sobre 4 000 pares de gêmeos idênticos e percebeu que, na maioria dos casos, quando um tem tendência a ver o mundo de modo otimista, o outro tem também – e quando um é pessimista o outro é igual. Ou seja, existe um forte componente genético na nossa tendência a ser feliz. Não que isso seja uma grande surpresa. Qualquer pai ou mãe sabe que algumas crianças nascem com vocação para o sorriso, enquanto outras são simplesmente muito mais difíceis de agradar.
Nas últimas décadas, apareceram muitas evidências de que nós tendemos a manter um “nível de felicidade” constante ao longo de nossas vidas – e nem mesmo grandes acontecimentos parecem capazes de alterar bruscamente esse nível. Um exemplo disso é a pesquisa conduzida pelo psicólogo Richard Lucas, da Universidade do Estado de Michigan, Estados Unidos. Lucas passou 15 anos entrevistando solteiros e casados na Alemanha e pedindo que eles dessem notas de 0 a 10 para seu estado de felicidade. Os solteiros tinham média 7,28. No momento em que eles casavam, o valor aumentava muito: para perto de 8,5. Mas dois anos depois a média já era de exatamente 7,28 outra vez. Ou seja, a longo prazo, o casamento parece não mudar – para melhor ou para pior – o nível de felicidade .
O mesmo vale para outros acontecimentos radicalmente transformadores – para o bem ou para o mal. Um estudo com ganhadores da loteria realizado em 1978 mostrou que esses felizardos têm picos de felicidade logo após o prêmio, mas tendem a voltar aos níveis anteriores alguns meses depois. Algo equivalente parece acontecer com pessoas que ficam paraplégicas em acidentes. Elas passam por um período de infelicidade, mas dois meses depois recuperam níveis quase tão altos quanto os anteriores ao acidente.
Esse acúmulo de dados levou alguns especialistas a afirmarem que a felicidade é algo imutável. Oito anos atrás, o pesquisador Lykken criou polêmica ao afirmar publicamente que “parece que tentar se tornar mais feliz é tão fútil quanto tentar se tornar mais alto”. Hoje até ele próprio reconhece que essa afirmação foi, no mínimo, exagerada. Parece que uma analogia melhor para a felicidade é compará-la com o peso. Cada um de nós tem um biotipo diferente – uma tendência para ser mais ou menos gordo. Mas é claro que os nossos hábitos e a nossa postura têm uma grande influência sobre o número que aparece na balança. É a mesma coisa com a felicidade: temos uma tendência natural para um certo nível. Mas fazer regime funciona.
UMA QUESTÃO DE DESEJO
Um exemplo do quanto podemos alterar nossa predisposição genética para a felicidade é a forma como lidamos com nossos desejos. Existem duas maneiras de alcançar a felicidade: possuindo mais ou desejando menos. Se a felicidade é a cenoura, a vara na qual ela está pendurada é o que chamamos de desejo. E estamos fazendo varas cada vez mais compridas.
Veja o caso dos países ricos. “Nos Estados Unidos e na Europa, há uma sensação de desapontamento, pois se está percebendo que existe um limite para a satisfação que a sociedade e os bens materiais trazem”, diz o economista e filósofo Eduardo Giannetti, autor do ótimo livro Felicidade. Nos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial, todos os indicadores econômicos e sociais melhoraram sem parar. A renda triplicou, o tamanho das casas dobrou e o acesso aos bens materiais cresceu tanto, que hoje há mais carros nas garagens do que habitantes no país. Ainda assim, o índice nacional de felicidade não cresceu um milímetro sequer. O Centro de Pesquisas de Opinião Nacional dos Estados Unidos entrevista periodicamente os americanos desde os anos 50 – e o resultado é invariavelmente o mesmo (um terço deles se considera “muito feliz”).
Há uma razão para isso: os americanos querem cada vez mais. Seus desejos não páram de crescer. Ou seja, a cenoura está cada vez mais apetitosa, mas também mais distante. Demandas crescentes são a condição essencial para manter a economia funcionando. A lógica do capitalismo é criar necessidades, para então satisfazê-las – não por acaso, esse país de insatisfeitos é o mais rico do mundo. Precisamos das coisas a partir do momento em que elas estão disponíveis e isso vale tanto para produtos quando para idéias. Quando vemos pessoas lindas, maquiadas e malhadas nas capas das revistas, e aparelhos de som inacreditáveis nos anúncios, fica difícil nos satisfazer com nosso visual comum e com o walkman velho mas honesto. Acontece que a felicidade não está diretamente ligada aos bens materiais. Ed Diener, da Universidade de Illinois, estudioso do assunto há 25 anos, avaliou o nível de felicidade das 400 pessoas mais ricas do mundo segundo a revista Forbes, e concluiu que elas estão rigorosamente empatadas com os pastores maasai da África.
Para complicar, temos cada vez mais opções. Na época em que a prateleira da farmácia abrigava apenas xampu para cabelos secos, normais ou oleosos, era fácil escolher um e ir para casa tranqüilo. Mas, quando na sua frente se enfileiram xampus de todas as procedências e preços, para cabelos ondulados, escuros, danificados, mistos, com pontas duplas, tingidos ou fracos, você não tem mais tanta segurança de que sua escolha foi a melhor. O mesmo acontece na hora de comprar um carro, creme dental ou comida congelada. Ou no momento de escolher um namorado ou uma profissão. “Muita gente fica simplesmente paralisada com tantas opções”, diz o psicólogo americano Barry Schwartz em seu livro, The Paradox of Choice (“O Paradoxo da Escolha”, não lançado no Brasil). Está aí uma fonte de frustração e ansiedade.
Em 2000, Sheena Iyengar e Mark Lepper, das Universidades de Columbia e Stanford, montaram em uma loja dois estandes com amostras de geléia, um com 24 opções de sabor e outro com apenas seis. O número de clientes que comprou o produto foi dez vezes maior no estande menos variado, ainda que o outro tenha atraído 50% mais gente. Por que isso acontece? Schwartz sugere que nessas situações as pessoas avaliam intuitivamente os “custos de oportunidade”: uma escolha implica abrir mão de todas as outras opções. Quando há centenas de possibilidades, escolher uma só significa “perder” muito mais. E, no mundo de hoje, em que cada um tem acesso ao mundo inteiro pela internet e quase não há limites para os nossos desejos, parece inevitável ficar ansioso – e infeliz – com tudo isso.
Pesquisando o assunto, o psicólogo encontrou padrões de comportamento que permitem dividir as pessoas em dois grupos: as que procuram fazer escolhas apenas satisfatórias, sem tentar alcançar a perfeição, e as que não sossegam até que encontrem “a melhor opção de todas”. As pessoas do segundo grupo costumam fazer escolhas melhores, é claro. Mas as do primeiro ficam mais felizes com suas decisões. “A solução é diminuir o número de opções ou melhorar nossa maneira de fazer escolhas”, diz Schwartz.
Então tá. Mas será que sabemos fazer as melhores escolhas para nossa vida? Segundo os pesquisadores Daniel Gilbert, Tim Wilson, George Loewenstein e Daniel Kahneman, a resposta é não. Decisões são tomadas tendo como base nossa previsão de como cada opção vai afetar nossas vidas. Porém, segundo eles, temos uma dificuldade enorme para avaliar o quanto um acontecimento vai nos deixar felizes ou infelizes.
Nós superestimamos a intensidade e a duração das nossas reações emocionais, ao mesmo tempo que subestimamos nossa capacidade de adaptação. Lembra da história dos ganhadores da loteria e acidentados paraplégicos que logo voltam ao nível normal de felicidade? Pois então: somos capazes de nos acostumar com quase tudo. Damos importância demais a escolhas que não são tão definitivas assim e esquecemos que uma decisão “errada” não é o fim do mundo. É uma questão de colocar limites nos nossos desejos. Em outras palavras, ser feliz é muito mais simples do que se pensa.
SIMPLES? ENTÃO EXPLIQUE
Tem uma idéia central: não leve tudo tão a sério. “Leveza” é a palavra-chave. Não quer dizer que todos devamos instalar um sorriso permanente no rosto e começar a achar bom tudo o que acontece. Leveza significa entender que até as melhores sensações têm fim, assim como não há aborrecimento que dure para sempre. Não é para se tornar um bobo-alegre: às vezes as circunstâncias nos obrigam a reagir de jeito negativo, e isso não é necessariamente ruim.
Gianetti chama atenção para a diferença entre “ser feliz” e “estar feliz”. “Existem pessoas que levam uma vida cheia de momentos de prazer, mas que não têm um caminho ou um significado. No extremo contrário estão aqueles que abrem mão do ‘estar feliz’ por só pensar no futuro e viver com prudência demais”. Talvez o melhor caminho esteja entre esses dois. Atingir esse equilíbrio não é moleza e infelizmente não há fórmula mágica nem manual completo. O lance é prestar atenção a si mesmo e ir mudando aos pouquinhos. “As transformações mentais demoram e não são fáceis. Demandam um esforço constante”, aconselha o dalai.
Felicidade não é um fim em si, e sim uma conseqüência do jeito que você leva a vida. As pessoas que procuram receitas e respostas complicadas para ela acabam perdendo de vista os pequenos prazeres e alegrias. É o dia-a-dia de uma pessoa e a maneira como ela reage às situações mais banais que definem seu nível de felicidade. Ou, para resumir tudo: um jeito garantido de ser feliz é se preocupando menos em ser feliz.

A RECEITA DA FELICIDADE
Esses métodos para se tornar mais feliz foram testados em laboratório. E funcionam
Prazer
• Permita-se ter experiências sensorialmente agradáveis de vez em quando. Não se trata só de emoções fortes. A maior parte dos prazeres é bem simples: conversar, ver uma paisagem bonita, comer algo gostoso.
• Tire “fotografias mentais” dos momentos agradáveis de sua vida – repare nos detalhes, nas cores, nos cheiros. Nas horas difíceis, tente recordar-se de tudo.
• Tenha companhia. Quase todas as pessoas sentem-se mais felizes quando estão com outras pessoas. Claro que isso não significa evitar a solidão a qualquer custo, mas é importante ter amigos.
Engajamento
• Dedique-se a tudo que você faz, no trabalho ou fora. Lembre-se: a diferença entre um emprego chato e um emprego legal pode ser a sua postura. Se você se envolver mais, ele vai ficar mais divertido.
• Arrume uma atividade desafiadora, difícil, e esforce-se para se tornar cada vez melhor nela. Yoga, aeromodelismo, videogame, natação, flauta, mountain bike, culinária vegetariana, bateria. Há opções para todos os gostos.
• Exercite-se. Esporte praticado com freqüência aumenta a disposição para a vida e em geral nos deixa mais ligados no mundo e no nosso próprio corpo. Algumas pesquisas sugerem que dar risada é um ótimo exercício.
Significado
• Pesquisas mostram que escrever num diário as coisas pelas quais você é grato garante um aumento no nível de felicidade que dura seis semanas. Portanto, de tempos em tempos, lembre-se de agradecer.
• Faça atos de altruísmo ou bondade. Colabore com alguma instituição humanitária, ensine algo que você saiba (não interessa se as aulas são de alfabetização ou de guitarra), saia do seu caminho para ajudar alguém.
• Se tem alguém que foi importante na sua vida, ainda que num passado remoto, faça-o saber disso, de preferência com uma visita pessoal. Os cientistas dizem que essa “visita de gratidão” pode valer um mês de felicidade.

A RECEITA DA INFELICIDADE
Se você quer mesmo ser feliz, precisa se convencer de que nada disso é a solução
Dinheiro
• Ele só traz felicidade até o momento em que cobre as necessidades básicas. Depois disso, mais dinheiro não altera o nível de satisfação. E um foco exagerado em coisas materiais vai esvaziar sua vida de significado.
Casamento
• Condicionar a felicidade a fatores sobre os quais você não tem controle não pode dar certo. Além disso, um casamento não tem nada a ver com um estado perene de alegria. Ele tem altos e baixos como tudo na vida.
Futuro
• “Vou ser feliz quando eu terminar de pagar meu apartamento.” É importante ter metas, mas achar que a felicidade está no futuro só adia sua realização. Sem falar que, depois de quitar a dívida, é provável que você invente outra meta, ainda mais difícil.
Carro novo
• Nossa cultura consumista e a publicidade criam necessidades novas a cada minuto. Às vezes o carro antigo ainda funciona muito bem, mas você se convence de que não pode viver sem o modelo maior que foi lançado esse mês.
Beleza
• Mais um caso de expectativa irreal. Em primeiro lugar, porque é impossível ter um corpo e um rosto perfeitos. Em segundo, porque nada disso é garantia de felicidade. Pergunte à Gisele Bündchen se ela não sofre às vezes.
Status
• Priorizar símbolos de status indica uma preocupação maior com os outros do que com você mesmo. Uma cobertura de frente para a praia é boa por causa da vista maravilhosa, não porque vai deixar os amigos morrendo de inveja. 
por Barbara Axt (Super Interessante 05/2005)